11.13.2004

O email de Alfredo Vieira

Sr. Tilly, não consigo fazer usufruto da caixa de comentários de um post recente seu, por isso envio-lhe este mail, para seu conhecimento. Que está tal qual se encontrava quando tentei e não consegui submetê-lo. Para que faça dele o que bem entender....
Fico sempre estupefacto ao ver gente inteligente, como o Sr. Tilly, a ver os problemas pela rama. Ainda que compreenda os circunstancialismos da opinião, e os respeite. Mas que um jornalista bacoco divulgue uma não-notícia, estou-me nas tintas de tão habituado. Só que ver a incapacidade de triagem do que é essencial relativamente ao acessório, por parte do que vamos tendo de mais diferenciado entre a população, choca-me.
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Querem ser bem atendidos nos serviços de Urgência em Portugal?
Então vamos por partes.
Em primeiro lugar, respeite-se a vocação do serviço de urgências: tratar urgências. E o que são urgências? São situações clínicas consideradas como tal por um clínico especialista em cuidados primários (vulgo os erradamente designados como sendo clínicos gerais ou médicos de família). Não é a situação clínica que o sujeito, que não percebe nada da gravidade da sua situação, se auto-atribui como sendo dirigida aos serviços de urgência.
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A dor de garganta é uma urgência? A constipação é uma urgência? A diarreia aguda é uma urgência? A bebedeira é uma urgência? As borbulhas que apareceram no corpo são urgências? A febre que apareceu hoje é uma urgência? Estamos a falar de muito mais de 50% das situações que afluem aos serviços de Urgência. E têm que ser todos vistos, até se provar não se tratar, de facto, de uma urgência, a não ser que se decida acusar os médicos de não serem também adivinhos. O que era, em suma, o que o médico generalista (repito: um especialista que estudou 23 anos para chegar lá) deveria ter feito, se a pessoa tivesse a ele recorrido, e se ele existisse. Há um AVC em nº5 da lista de espera? Espera. Um enfarte agudo do miocárdio em nº9? Espera. Um abdómen agudo em 16º? Espera. Espera pelas borbulhas, febres, dores de garganta.... Se entretanto entrarem em paragem cárdio-respiratória, entram logo num rebuliço, mas geralmente já é tarde. E esses casos realmente urgentes também têm que ser tratados, não da forma ideal, mas da forma possível, ao mesmo tempo que o médico continua a ver as dores de garganta e as febres, dispensando mais ou menos atenção, conforme a sua maior ou menor perícia, a eles nos “intervalos”. Com carência de estruturas físicas, de meios de diagnóstico e tratamento, de recursos humanos.
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Claro que a patologia não urgente tem que ser vista, diagnosticada e tratada por alguém, e atempadamente. Os CUCSE's e os SAP's fecham às 20h00 ou às 24h00? Poupança "exige". Há um médico para atender 200 pessoas por dia, o que leva a que as situações urgentes atinjam estados graves por atraso no diagnóstico e/ou encaminhamento? Dois médicos custam caro, e há um buraco na saúde para controlar.
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Nas urgências temos, de forma criminosamente legislada, médicos de serviço durante um mínimo de 24 horas seguidas por semana, 47 semanas por ano (já descontadas as férias)? Nesta situação está a esmagadora maioria. Esperam concentração para o vosso caso em particular, entre 50 mais ou menos graves que ele teve/terá que ver? Depois de 12 horas de serviço? Depois de 18? Esperam que ele não erre? Esperam simpatia? Depois de 3 toxicodependentes lhe terem feito choradinhos para lhes serem prescritos uns ansiolíticos nos intervalos das doses? Depois de uns quantos bêbados os terem ameaçado quando lhes foi transmitida a circunstância das suas situações não serem urgentes? Depois de um par de familiares desgastados pelos avós, que não estão em lares por falta de dinheiro, lhes terem tentado impingir um internamento em regime de hotelaria com base em queixas virtuais, chantageando com os óbvios maus tratos e falta de cuidados com que vitimizam os idosos inocentes? E tantas outras situações, tantas, que suas excelências, do alto das suas sabedorias e sentenças, nem conceber conseguem, visto nunca terem na vida estado tão perto do lado mais carente, mais decadente, menos educado, menos compreensivo e mais agressivo da sociedade que ignoram.
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E pensam que isto é assim porque há falta de médicos? Meus caros, que supremo engano. Se em vez de olharem com tanta desconfiança para a única classe interessada em melhorar estas condições de trabalho (logo, proporcionando melhor atendimento aos “utentes”), vissem menos televisão e constatassem melhor os números reais que podem obter. Não há pois falta de médicos. Há médicos no desemprego, ou com emprego precário, apesar da falta. Mas estejam descansados, que se está a poupar, na vossa saúde.
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Há erro médico? Cruzes credo, que a terra tremeu! Esses cabrões ainda por cima enganam-se! Não só se divertem a atender-nos mal, a deixar-nos secar com as nossas mazelas, alegremente afastados das suas famílias, anualmente, por um período total que ronda um mês e meio, e sem paciência para a mesma durante mais 3 meses (dia precedente e seguinte), como ainda... erram. Esses incompetentes, que têm o privilégio de terem sido os melhores entre os melhores nas suas turminhas, nas suas escolinhas, enganam-se? Que tiveram o privilégio de estudar 6 anos de curso em regime de reclusão, que têm o privilégio de terem que trabalhar depois do curso entre 5 a 8 anos para finalmente terem o estatuto (obrigatório) de especialistas, para finalmente não terem emprego certo (ao contrário do que suas excelências sabedoras julgam). E ainda têm a lata de se enganar.... A sociedade a dar todas as benesses deste mundo e do outro, entre cuspidelas e insultos gratuitos, entre indignações egoístas e hipócritas, e eles enganam-se. Sim, porque ninguém mais se engana, ninguém mais erra, sobretudo essa enorme massa de génios que lança essas sentenças. Algumas iluminárias até adiantam a solução para estes enganos: não serem os melhores a irem para Medicina. Querem ser tratados por alunos de 14, 15 valores? Ao contrário do que julgam, já podem. Têm é que saber falar espanhol. E de preferência não estar muito doentes.
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Isso é sobre o que falam os “inteligentes” ao serviço dos brainstorms de pacotilha em Portugal. Modelos de financiamento? Nem pensar, antes os modelos de não financiarmos todos por igual. Melhor gestão? Não, então e o partidozito que ganha deixaria de poder ocupar centenas de tachos!? Que interessa que não percebam nada do que fazem, que estamos em permanente retrocesso a ensinar as criaturas como as coisas funcionam, para depois eles sairem quando já começavam a saber o papel do soro fisiológico num hospital? Melhor política do medicamento? Então e o nosso ministro deixava de poder relacionar-se com os grandes laboratórios internacionais, a troco só ele sabe do quê, e iria afrontar essa filantropa associação que é a ANF? Melhor controlo da produtividade, com critérios de qualidade (e nunca de quantidade)? Balelas. Fizeram um estudo (foram médicos que o fizeram, os únicos não-sacanas e que nunca se enganam, provavelmente, pensa o Zé povinho) para detectar erros, corrigir procedimentos e exigir reformas? Qual quê! Importante importante é saber que os cabrões enganam-se! E nem pergutem porquê, que nos dá logo uma dor de cabeça que nos distrai do objectivo fundamental e contrutivo (à maneira portuguesa), que é a de insultar uma classe de gente, maioritariamente ímpar no panorama merdoso da intelectualidade nacional. “Os cagões”, pensam 99% dos leitores, “a acharem-se superiores”. Ninguém pede que o reconheçam. Apenas que não chateiem com as futilidades com que gostam de os brindar gratuitamente.
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Sabem como se resolveria o problema do buraco da saúde em Portugal sem aumentar o défice? Inventando um imposto que fosse canalizado para a melhoria real, metódica, científica e séria do sistema. Um imposto sobre a cretinice.
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Alfredo Vieira

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Também eu tentei comentar mas deve haver um problema de tamanho de texto, por isso coloco aqui o comentário:
Ora eu quero descansar o sr Alfredo Vieira, informando-o de que a minha média de entrada em engenharia mecânica na FCTUC em 1979 foi 1,7 valores acima da do último estudante que entrou em medicina.
O resto só converso consigo quando algum familiar seu (e nem precisa de ser o seu pai) for desta para melhor vítima do ostracismo de uma equipa inteira que esteve toda a tarde do dia 23/04/2004 na conversa e na gargalhada, de costas para os doentes nos corredores das Urgências, sem nunca ninguém lhe ter perguntado sequer de que se queixava.
Morreu nas mesmas urgências 24 horas depois de ter percorrido mais 360 km e, até agora, ainda ninguém sabe porquê.
Nem isso interessa, minimamente.
Consigo não acontecerá - bem o sei - porque terá amigos enfermeiros, médicos e especialistas por toda a parte que se encarregarão de "acompanhar" o seu familiar a par e passo, descurando, obviamente, os outros que morrerão entretanto.
Mas, pelo menos, faça o favor de desculpar os outros doentes que tiverem o mau feitio de morrer em lugar dos seus entes queridos.
Tratar-se-á apenas de um erro...
E um erro qualquer um pode ter, não é?

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