1.17.2019

Fernão Lopes conta como a multidão matou o bispo de Lisboa, escondido numa torre da Sé.

19. COMO O BISPO DE LISBOA E OUTROS FORAM MORTOS E LANÇADOS DA TORRE DA SÉ ABAIXO.

Sendo toda a cidade ocupada neste alvoroço, e vindo com o Mestre até junto da Sé, foram alguns lembrados que ao irem por ali com Álvoro Pais bradaram aos de cima que repicassem [10] , e que repicando emSão Martinho e nas outras igrejas, na Sé não os quiseram repicar, e souberam que o Bispo era lá em cima, e que mandara cerrar as portas sobre si.
E porque era castelhano, disseram logo que era da parte da Rainha e do Conde, e que fora sabedor da traição e morte que quiseram dar ao Mestre, e que por isso não repicaram, assacando contra ele estas e outras muitas suspeitas, que não minguava quem as afirmasse.
E ficou logo ali grande parte do povo, aceso com brava sanha, para haver depressa entrada a Sé e filharem logo do Bispo vingança.

 O Bispo era natural de Zamora e havia por nome dom Martinho, e sendo Bispo do Algarve houvera obispado de Lisboa por [11] Gonçalo Vasques, licenciado em degredos [12] , que lho ganhou do Papa Clementepara haver o priorado de Guimarães [13] .
Este Bispo era grande letrado, bom eclesiástico e regia mui bem a sua igreja, morando por cima da claustra [14] dela para continuadamente vir às horas e divinais ofícios, e tinha em vontade de ali mandar fazer casas para morarem todos os cónegos, por haverem azo de melhor servir.
E estando ele naquele dia comendo, e o Prior de Guimarães com ele, que havia um ano e mais que o não vira senão então, ouviram uma grande volta no Paço da Rainha, que era aí cerca, e carpinhas [15] de mulheres, com grandes vozes de gentes pelas ruas derredor, bradando todos que matavam o Mestre.

O Bispo ouvindo tamanha volta [16] , e que cada vez era maior, bem cuidou que não era feito leve, e por segurança de qualquer coisa que avir pudesse deixou a mesa a que estava e desceu-se por uma escada afundo, à claustra, ele, o Prior de Guimarães e um tabelião de Silves que nesse dia chegara para recadar [17] consigo.
Com estes dois convidados e alguns seus, se foi o Bispo à mais alta torre da Sé, onde estão os sinos, mandando primeiro fechar por dentro todas as portas da igreja. E quando Álvoro Pais por ali passou à ida bradaram aos de cima, como dissemos, que repicassem.
O bom homem não sabia que volta era aquela, e ademais, porque o dar da campana [18] em tal igreja era azo de grande alvoroço da cidade, duvidou muito de o fazer.

Eles, quando viram que não repicaram na Sé e que o Bispo estava daquela guisa na torre, as portas da igreja fortemente fechadas e que as não podiam tão asinha quebrar, houveram escadas [19] e entraram por uma fresta, e foram [20] mui depressa abertas. Entraram então quantos quiseram – porém muito poucos em respeito dos [21] que estavam cá fora – e a comum voz de todos era que fossem lá cima ver quem estava na torre e porque é que não repicara como nas outras igrejas, e se fosse o Bispo, que o deitassem afundo.

Silvestre Estevens, homem honrado, procurador da cidade, o alcaide pequeno dela e outros subiram por uma estreita escada que anda arredor [22] , pela qual não iam mais que um após outro, nem ninguém podia entrar na torre enquanto de cima a defender quisessem.

O Bispo, vendo como era castelhano e de nação a eles contrária, receava muito em tal união [23] o que todo sisudo deve de recear, e não lhes dava lugar a que entrassem.
Porém, vendo-se sem culpa, ademais tal pessoa e eclesiástica, segurando-o eles para isso primeiro e aos que com ele estavam, houveram entrada em cima. E perguntando-lhe porque não mandara dar à campana, pois que aquelas gentes bradaram que repicassem, ele se escusou com suas mansas e boas razões de jeito que todos foram contentes.

A cega sanha, que em tais feitos nenhuma coisa esguarda [24] , começou tanto de arder nos entendimentos do povo que à porta principal da igreja estava, que começaram a bradar em altas vozes aos de cima que estavam fazendo, que não deitavam o Bispo afundo, dizendo, Guardai-vos, não vamos nós lá, que se nós lá imos todos vós haveis de vir afundo com ele.

 Aos de cima, que vontade não tinham de lhe fazer mal nem nojo, era-lhes muito grave de o fazer, à uma por ser bispo, ademais seu prelado, depois pela segurança que lhe haviam feita, e não sabiam o que fizessem.

 A sanha trigava [25] os corações de todos, e com menencoria grande começaram de bradar, olhando todos para cima e dizendo, Que tardada é essa que vós lá fazeis, que não deitais esse traidor afundo? E como? Já vos tornastes castelhanos como ele? E ademais se vos peitou para que o não deitásseis, e sois já todos dum acordo? Então começaram todos de jurar que se o não deitavam, e iam lá cima, que todos haviam de vir afundo com ele.

E porquanto é justo todo o temor por que a homem [26] pode vir a morte, ou ficar cerca dela, houveram disto tão grande receio que logo o Bispo foi morto com feridas [27] e lançado à pressa afundo, onde lhe foram dadas outras muitas [28] – como se com isso ganhassem perdoança – que sua carne já pouco sentia. Ali o desnudaram de toda a vestidura, dando-lhe pedradas com muitos e feios doestos – até que disso se enfadaram os homens e os cachopos – e foi roubado de quanto havia. Semelhavelmente foi lançado afundo aquele Prior de Guimarães, seu convidado, porque um escudeiro que lhe queria mal, subindo acima com os do concelho, viu tempo [29] azado para o matar, e buscando-o pela torre, achou-o escondido e matou-o.

E não tendo ninguém sentido da morte dele porque estava com o Bispo, nem havendo quem o levasse dali, deitaram-no da torre afundo. Ao coitado do tabelião, que tão pouca culpa havia como os outros, começaram de o trazer para baixo e de o doestar e empuxar – dizendo que ele, que com o Bispo estava, bem sabia parte daquela traição – e tantas[30] lhe deram de punhadas, até que lhe começaram de dar feridas e o mataram.

 E assim morreram todos os três, e outros fugiram. E jouveram [31] ali, aquele dia e a noite, o Prior e o tabelião. E logo em esse dia algumas pessoas refeces [32] lançaram ao Bispo, onde jazia nu, um baraço nas pernas, e havendo chamado muitos cachopos que o arrastassem, ia um rústico bradando adiante, Justiça que manda fazer nosso Senhor, o Papa Urbano sexto, neste traidor cismático castelhano, porque não tinha com a santa Igreja. E assim o arrastaram pela cidade, com as vergonhosas partes descobertas, e o levaram ao Rossio, onde o começaram a comer os cães, que não o ousava nenhum soterrar.

E sendo já dele muito comido, soterraram-no ao outro dia ali no Rossio, e os outros dois foram depois soterrados, para tirarem o fedor [33] de ante as suas vistas. E posto que a algumas pessoas tais coisas parecessem mal e desonestamente feitas, nenhum era ousado de dizer o contrário.