5.10.2002

Sobre a extinção da RTP e o tão propalado Serviço Público de Televisão... O serviço público que o público não quer

Continuo a achar um piadão a todos os pensadores que, acabadinhos de acordar de um sono profundo de década e meia, aparecem agora aos saltos defendendo acérrimamente a urgência da instituição de um SPT - serviço público de televisão, e a consequente liquidação da RTP1 enquanto canal generalista, porque totalmente esvaziado de conteúdos e apenas competidor, em baixa, com as bambochatas da SIC e TVI.

Informo gratuitamente estas dezenas de Karl Poppers de bolso que o povo, na sua imensa e esmagadora maioria, e por todas as razões ideossincráticas e mais algumas, nunca perderá tempo a ver coisa que se revista de um mínimo de qualidade ou solicite a mais básica das ponderações.
Pelo menos nos próximos 100 anos, com tendência a piorar.

Mais informo que os programas que apelavam antigamente para o raciocínio ou interiorização de conceitos não-básicos foram sendo progressivamente banidos do mainstream, por se provar a sua continuada impenetração na audiência.
Mais: cedo se percebeu que uma programação que não roçasse o mais baixo que o ser humano é capaz se mostrava ruinosa para a sobrevivência das estações que ingénuamente tentaram promovê-la, na medida em que um programa não-estúpidificante provoca de imediato centenas de milhares e mesmo milhões de espectadores em desabrida para as concorrências que, súbita e desmesuradamente, se vêem engordar, independentemente das suas próprias programações do momento (desde que igualmente imbecis, é claro).

Este efeito de zap pernicioso atirou dezenas de pequenas estações regionais nos EUA para a mais negra falência e obrigou muitas outras grandes estações a "corrigirem-se" editorialmente a fim de, simplesmente, conseguirem sobreviver.

Mas também era só ler.
Está tudo estudado, publicado, defendido em milhares de teses por esse mundo fora. Não se inventa a pólvora aqui.
As outras televisões generalistas por todo o mundo desenvolvido são iguais ou piores que as nossas.

Em Portugal - o país em que se instituíu que a popularidade deve substituir a competência - devíamos continuar a ser criativos.
O que é recomendável e popular aqui é precisamente o inverso do defendido para a RTP: mais canais a darem o mesmo, para que o povo possa ter acesso a novelas e futebol ininterruptamente, enquanto o futebol e as novelas dos canais concorrentes estiverem em pausa para o publicitário intervalo.

"Os portugueses" (como lhes chama a TVI) aderem em massa a este formato, legitimando aquele que parece ser o verdadeiro serviço público reservado à televisão em Portugal: A transmissão de "reality shows" em sessões contínuas.

Mais generalismo implica, por outro lado, descida dos preços na publicidade aos pensos higiénicos e aos detergentes para a louça.
Todos ganhamos com isso.
Ficaremos a conhecer muitas mais marcas que lavam 1 milhão de caçarolas com meia gota, pensos que deixam respirar e fazer o pino, e iogurtes que possibilitam a levitação de todas as senhoras obesas que os carregarem, às caixas, nos hipermercados.

A guerra Quixotesca a favor da cultura do povo está perdida por definição, porque o povo simplesmente não quer ser chateado com cultura de nenhuma espécie.

Quer é circo. E isso tem. Portanto é feliz.

A Manuela Ferreira Leite pode continuar descansada.

9/5/2002