2.08.2003

Justiça? Onde?

Três em cada quatro presos preventivos, depois de ano e meio de vergonhosa reclusão em prisões onde a droga e as violações são o dia-a-dia, acabam por ser libertados por falta de provas, em Portugal.
Enquanto andamos preocupados com o Carlos Cruz, a maioria dos criminosos locais passeiam-se descansadamente entre nós, todas as noites, na nossa cidade .

Depois de Bibi e Carlos Cruz, nada mais na Justiça Portuguesa ficará na mesma. Diz o bastonário e eu subscrevo. Mas pelas razões contrárias.
Quando este desgraçadado caso terminar – se alguma vez se apurar o que quer que seja – os portugueses irão finalmente perceber que, se até aqui desconfiavam dos métodos judiciários, a partir de então terão todas as razões do mundo para desacreditar de forma militante da justiça que se tem praticado por aqui.
Mesmo os mais crédulos e bonacheirões deixarão de ter qualquer argumento para crer na instituição que mais envergonha, em termos internacionais, um estado terceiro-mundista convicto, permanentemente auto-apelidado de Estado de Direito, vá-se lá saber porquê.

Não o é, de facto. Nem nunca o foi, rigorosamente. Basta consultar as dezenas de condenações anuais sentenciadas ao estado português pelos Tribunais Internacionais, em que não há memória de o nosso país ser absolvido em nenhum processo.
É permanentemente condenado.
Talvez a Justiça esteja a atravessar, neste momento, a fase menos negra da sua história, mas a velocidade e a exigência dos tempos actuais ultrapassaram definitivamente o seu marasmo burocrático. E quando decide agir, por falta de uma continuada cultura de intervenção, fá-lo da forma mais desajeitada.

A descredibilização da nossa Justiça deve-se fundamentalmente à prescrição dos principais (e inúmeros) processos; à impunidade dos biliões da alta-finança - que fogem ao fisco todos os dias, enquanto o Zé da esquina é condenado a prisão por não poder pagar uns tostões de IVA - à lentidão mortal das respostas; ao impune financiamento partidário; ao súbito aparecimento de sacos azuis por todo o lado de forma instituída e até socialmente aceite; às grandes redes de corrupção intocáveis.

A isto já estávamos todos habituados e pior não podia, pensávamos, acontecer.
Afinal podia.
Pior é quando a máquina gripada da justiça decide dar uns golpes de rins, relativamente ao expectável, como que querendo mostrar ao povo que está a começar a funcionar.
Aí, a dimensão do descalabro torna-se grotesca.

A começar pelo processo de detenção: as últimas - no futebol, câmaras municipais e pedofilia - têm sido realizadas da forma mais Kafkiana que imaginar se possa.
A moda parece ser a da perseguição dos "alvos", pelos investigadores, durante dias seguidos, já com os mandados de captura em seu poder, e sem os deterem. Um jogo inacreditável do gato e do rato, à revelia da ordem do tribunal, que só pode servir propósitos pouco claros, por parte de quem deve, justamente, à transparência e à rectidão, a razão de ser da sua profissão.
De repente, talvez porque se aborrecem do jogo, decidem acabar com ele e deter, finalmente, os suspeitos.E então tem que ser sempre da forma mais aparatosa, às tantas da noite e ao fim-de-semana, quando o impacto dos noticiários é maior - dada a disponibilidade da população.
Deve dar mais "pica", porventura, aos "caçadores", o acelerar a fundo, com os suspeitos detidos, por meio dos holofotes das câmeras das televisões.

Aqui começa o martírio dos indiciados e a continuação do jogo dos policiais. Mais umas horas até o juiz estar pronto para começar a interrogar (quando decide interrogar!) os detidos, e chegam-se as 4 e as 5 da manhã.
Os detidos, em pleno stress desde as 10 da noite, são ouvidos (quando são, repito) às altas da madrugada, completamente confundidos e decididamente fora da posse de todas suas faculdades mentais, psicológicas e físicas.
E o que lhes perguntam? Questões laterais de circunstância, porque o detido e o seu advogado (se arranjar um às 4 da manhã) não terão, nesta fase, acesso ao conteúdo da acusação de que está a ser vítima. E digo vítima, propositadamente. Porque toda a gente é inocente até transitar em julgado a última sentença do seu processo. O que, em Portugal, com os milhentos recursos possíveis e a totolótica previsibilidade das suas diferentes sentenças, pode demorar mais do que uma década. A vida do arguido.

Por isso temos 50% da população prisional em regime de prisão preventiva. Dos quais, segundo os números do Ministério da Justiça, cerca de 75% são absolvidos. E quando? Depois de um tempo médio de reclusão preventiva de 16 meses.
Não há outro país na Europa e não sei se no mundo inteiro, que ostente internacionalmente tamanha vergonha, tamanha injustiça. Trata-se, na minha opinião, de um verdadeiro atentado contra a cidadania (pelo menos por negligência).

Três em quatro presos preventivos, depois de ano e meio de reclusão vergonhosa, são libertados por falta de provas, em Portugal.
Três em quatro cidadãos presos preventivamente estavam, portanto, indevidamente presos.

Entretanto, enquanto andamos preocupados com o Carlos Cruz, se ele é culpado ou inocente, se ele é pedófilo ou se o tramaram, a maioria dos criminosos locais passeiam-se descontraidamente entre nós, todas as noites, na nossa cidade.
Um apanhado das dezenas de mensagens inscritas do fórum a este respeito demonstra que todos os cidadãos sabem quem eles são. Estão todos socialmente identificados.

Sabemos que eles vendem droga a miúdos de 14 anos. Que não trabalham a não ser nessa actividade. Que não pagam impostos, nem são presos por isso. Que não têm carta de condução. Que conduzem carros ilegais. E que são repetidamente presentes a tribunal acusados, pela GNR, dos mesmos delitos.
E que se vêm embora, mais rápido que os polícias, aguardando em liberdade, a próxima apresentação ao Juiz.
E que continuam a vender droga a miúdos de 14 anos. E que continuam sem trabalhar. E que continuam a conduzir carros ilegais sem carta…

E nós, os senenses, cá continuamos preocupados com o Carlos Cruz.
João Tilly