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3.24.2006
Faz hoje 2 anos que o SNS deixou morrer displicentemente João Tilly dos Santos
Dois anos depois continuamos sem saber o resultado da autópsia.
Um homem foi deixado à sua sorte nos corredores dos hospitais e acabou por morrer.
Ainda ninguem pagou por isso.
Outros podem ter já morrido vitimas da mesma displicência e "deixa andar" das mesmas equipes clínicas.
Por isso aqui deixo, de novo, a história do fim da vida de João Tilly dos Santos.
Um português inteligentíssimo que teve a percepção de que ia morrer por inépcia dos médicos que o "assistiram".
Eu é que nunca acreditei nisso.
Mas aconteceu.
Para que nunca mais aconteça.
Em memória do maior damista e acordionista que estas paragens alguma vez viram.
A HISTÓRIA
Do Hospital de Seia, enviam-no para o de Coimbra com suspeitas de pneumonia ou enfarte de miocárdio.
Do Hospital de Coimbra devolvem-no para o de Seia muito pior de saúde do que lá chegou e sem nenhuma razão aparente. Os sintomas tinham-se agravado sobremaneira, entretanto.
Do Hospital de Seia enviam-no para o da Guarda porque cá não há Pneumologia
Do Hospital da Guarda enviam-no novamente para o de Coimbra, sem sequer entrar na Pneumologia e sem conhecimento dos familiares.
Do Hospital de Coimbra enviam-no... para a morgue.
E tudo isto sem um único tratamento, a não ser... soro!
Fica aqui o relato dos últimos 5 dias de vida do meu Pai que, acredito, possam servir a alguém que passe pelo mesmo.
Quanto mais não seja para evitar que o Serviço Nacional de Saúde mate por absoluta negligência um seu ente querido, tal como fez com o meu.
Sexta - feira, 19 (dia do Pai) - o meu pai sente-se subitamente mal com problemas intestinais.
Nada que justificasse uma ida ao hospital, pensou ele.
E foi para a cama mais cedo.
Sábado, 20 de Março - O meu irmão leva o meu pai e a minha mãe ao Hospital de Seia, já que entretanto tinham-lhe surgido umas dores gástricas a nível do esófago.
Cada vez que engolia eram dores insuportáveis que mal o deixavam respirar.
Foi medicado e fui buscá-los ao Hospital de Seia por volta das 7 da tarde. Entrou no carro pelo seu pé.
Fomos à Farmácia aviar a receita e levei-os a casa.
A noite passou-a mal.
As dores não desapareciam e agora surgia a dúvida se não seria também uma infecção na traqueia, já que até a inspiração do ar lhe causava pena.
Decidiu não ir novamente ao Hospital porque a medicação «ainda não teria tempo de começar a fazer efeito».
Combinou-se que iria no dia seguinte, segunda-feira, se não melhorasse entretanto.
O certo é que nessa mesma noite, por volta das 00:30h teve que se chamar uma ambulância, porque o meu pai já não podia com dores.
No Hospital ficou a soro.
Fez análises de manhã, em que lhe diagnosticaram vestígios de enfarte de miocárdio e uma pneumonia.
Enviaram-no para os Hospitais da Universidade de Coimbra - a única coisa que foi bem feita em todo este processo.
Esse favor devemos à Dra Margarida Ascensão e aqui lhe deixo os meus (e os dele, que muito insistiu em vida para que lhos desse) profundos agradecimentos.
Segunda-feira, 22 - O meu pai chega a Coimbra cerca do meio dia. Eu, que só tomo conhecimento dessa transferência e do seu preocupante diagnóstico por volta dessa hora, sigo de imediato para lá com a minha mãe.
Estivemos nas Urgências desde as 14:30h repetidamente perguntando pelo seu estado de saúde até às 17:00h.
Primeiro disseram-nos "que estava bem disposto" mas em observação.
Que perguntássemos passadas 2 horas, outra vez. O que fizemos.
Aí, a informação já foi outra: que o seu estado era muito preocupante e apresentava um quadro grave de provável pneumonia ou enfarte de miocárdio, o que já sabíamos desde Seia.
Que ia ficar internado de certeza. Claro que já o suspeitávamos, dado o diagnóstico de Seia.
Perguntámos se era preciso ir buscar a roupa que estava no carro e a enfermeira disse que não.
Que «ele não se podia levantar», que estava «prostrado» e que «não acreditava que pudesse levantar-se nem sequer para ir á casa de banho.»
Fiquei preocupadíssimo e pedi para mo deixarem ver nem que fossem só 5 minutos.
Que não, «nas Urgências não se podem ver doentes».
Mas após a minha insistência e quando lhe dissemos que «somos de Seia - a 100 Kms de distância - e que assim sendo iríamos embora, porque não estavamos ali a fazer nada», lá condescendou a deixar-me ir «dar-lhe uma palavrinha de não mais que 5 minutos e sair de imediato».
Assim fiz.
Entrei e depois de mais um tempo de espera, lá encontro o meu pai deitado numa maca num corredor, ao pé de tantos outros.
A receber soro. Como em Seia.
Ficou radiante por me ver e disse-me logo:
« - João: isto aqui é um matadouro!»
«Ninguém quer saber dos doentes. Olha que estou há horas a pedir uma pinga de água para molhar os lábios e ainda não ma deram. Já não sinto os lábios nem a boca de ressequidos que estão.»
Dirigi-me a um auxiliar que foi muito amável (tive sorte) e me arranjou um copo de água "choca", segundo o meu pai.
Assim que a bebeu, rejeitou-a logo. Não conseguia manter nada no estômago. Nem sequer água pura.
Enquanto era acometido dos vómitos chamei por um médico ou alguém num grupo de 7 ou 8 pessoas entre médicos e enfermeiros que estavam a cerca de 6 metros em amena cavaqueira e de costas para nós.
Um deles virou-se, viu o meu pai aflito e perguntou:
- Está a vomitar?
Respondi: está sim. Está aflito. Não podem ajudar?
«Está bem» disse e voltou novamente as costas, continuando a conversa com os colegas.
Eu nem queria acreditar naquilo!
Mas como entretanto ele ficou melhor, parando com os vómitos, controlei-me e decidi chamar um outro médico para lhe dizer que o doente já não comia nada desde sexta-feira (há 4 dias) e que devia ter algum problema gástrico.
Transmiti isso a um médico jovem que entretanto se aproximou da maca.
Disse-me que o meu pai ia ser visto, mais tarde, por um especialista que devia estar a chegar.
Passadas 3 horas apareceu um médico ainda mais jovem que lhe perguntou o que tinha.
O meu pai começou a explicar tudo, com grande esforço, porque já mal conseguia falar, mas o médico interrompeu-o passados 10 segundos de explicações e, olhando apenas para os papéis que tinha nas mãos, lhe disse, no tom mais seco que já ouvi a alguém:
- olhe, isto é assim: Eu devia fazer-lhe uma endoscopia, mas como o sr tem aqui suspeitas de enfarte de miocárdio não lha posso fazer. Virou as costas e foi-se embora.
Fiquei a olhar para o meu pai e ele para mim, atónitos.
E agora?
Ao que o primeiro médico jovem me respondeu que «em princípio iam mandá-lo de volta para Seia».
«- Mas sem poder comer nada? perguntei.
Então não vêem o que é que ele tem, que o impede de engolir nem que seja uma gota de água»?
Não obtive resposta.
O médico encolheu os ombros e foi-se embora.
Passado mais uma hora, uma profissional de bata larga, aberta e esvoaçante de cor verde (não sei se seria médica) jovem e divertidíssima, que esteve sempre a rir-se e às gargalhadas com os colegas, dirigiu-se ao telefone e perguntou se havia alguma ambulância para Seia.
Eram 19 horas. Não sei o que lhe responderam, mas ela, gargalhando sempre, gritou:
- Que sorte! E depois de mais de cerca de 5 minutos de conversa de circunstância sobre saídas à noite e marcações de jantares com a pessoa do outro lado, desligou o telefone, sempre a rir.
Estava visivelmente satisfeita.
Ainda bem, - pensei eu. É sinal que as coisas lhe estão a correr bem.
Passou-se uma hora.
Eu perguntei de novo a um médico que passava se iam mesmo enviá-lo para Seia, porque o meu pai já tinha muita dificuldade em respirar e dizia que lhe doía tudo.
Disse-me para esperar.
Às 20 horas e 15 minutos, a médica das gargalhadas, sempre sorrindo, telefonou outra vez.
«Ainda está aí a ambulância para Seia»?
Ficou mais séria. Percebeu-se nitidamente que já não.
- Mas eu tinha-a pedido... balbuciou, agora sem rir.
Acabou a conversa e escreveu num papel aos pés da maca do meu pai:
«Transporte para Hospital de Seia pedido às 20 horas».
Continuei à espera, ao pé dele, e cerca das 21 horas comecei a passar-me da cabeça e tirei várias fotografias, com o telemóvel, ao papel e ao estado em que o meu pai estava.
Praticamente já não falava.
Aproxima-se de mim um médico e convida-me a sair, «para evitar confusão». Não havia qualquer confusão.
Em toda a tarde do dia 22 não tinha entrado nenhum doente em estado grave, pelo que o mais grave seria mesmo o meu pai.
Mas acatei a ordem e saí, informando que ficava à espera do doente nas urgências.
Mal tinha chegado lá fora ouço chamar ao microfone «os acompanhantes de João Tilly dos Santos».
Voltei para dentro a correr.
Ao chegar lá, novamente, aproxima-se de mim um médico que se identificou como sendo o chefe da equipa e me disse que «lhe tinham dito que eu andara a tirar fotografias ao banco, o que era muito desagradável.»
Eu respondi que tirei fotografias ao meu pai, apenas, e mostrei uma delas.
Perguntei se o meu pai sempre ia para Seia ao que ele respondeu que não sabia (!), e perguntou-me a mim se o cardiologista lhe tinha dado alta (!!!).
Fiquei embasbacado e respondi que não sabia mas que «era o que estavam a dizer (a médica das gargalhadas ao telefone)».
Disse, então, que devia ir para Seia, devia, mas nitidamente sem saber do que estava a falar (por não conhecer absolutamente nada do quadro clínico do doente).
Vim-me embora e fiquei à espera dele, cá fora.
Isto eram 21:10h.
Para abreviar a história, informo que a ambulância partiu do Hospital com o meu pai dentro às 01:10h da manhã.
E o mais grave é que a ambulância que o trouxe, estava estacionada à porta do Hospital há, pelo menos, 4 horas.
Seguimos a ambulância até Seia, onde chegámos cerca das 2:15h da manhã.
O meu pai estava no pior estado em que o vi na minha vida e apenas arranjou força para me dizer: «foi a pior viagem da minha vida. Não aguento outra».
Mal sabia ele que iria ainda fazer mais duas.
Entrou para dentro do hospital de Seia e duas enfermeiras disseram à minha mãe que o não podia acompanhar a partir daí e que tinha que se ir embora.
Fomos.
Estávamos arrasados fisica e psicológicamente (como estaria o meu pai...)
Terça- feira, 23 de Março
O meu pai é enviado para a Guarda às 5 da tarde com o pretexto de Seia não ter Pneumologia.
Lá foi.
Eu ainda me meti no carro para o acompanhar, mas como a minha mãe foi com ele na ambulância, combinei com a minha filha ir vê-lo na tarde do dia seguinte - quarta-feira, que eu tinha a tarde livre, escusava de faltar às aulas. Ela concordou.
Mal sabíamos nós que não mais o veríamos vivo.
À saída, o meu pai ainda teve a lucidez de se despedir (definitivamente) dela e da mãe, dizendo claramente: «para a Guarda não quero ir, porque eu vou morrer lá.»
Quarta-feira 2 de Março.
Estive desde as 9 da manhã ininterruptamente (de 5 em 5 minutos) a tentar ligar para o hospital da Guarda.
Primeiro para a Pneumologia - consegui ligação às 10:30h da manhã e de lá disseram-me que ainda não tinha dado entrada.
Devia estar ainda nas urgências.
Liguei para o geral. Informaram-me que não podiam ligar para as Urgências, que tentasse as Relações Públicas.
Consegui ligação às 11:45h sensivelmente.
Informei que tinha estado toda a a manhã a tentar ligar e que por favor me desse a informação pretendida agora que tinha conseguido, para não me voltar a acontecer o mesmo.
Respondeu-me uma senhora muito simpática a dizer que ia ver, e que depois me ligava sem falta nenhuma, para o que lhe dei o meu número, agradecendo muito o obséquio.
Não mais me ligou.
Às 12:30h, hora a que saí das aulas, tinha à minha espera a minha filha e a mãe, que me deram a pior notícia do mundo.
Tal com o ele tinha previsto, tinha efectivamente morrido... mas em Coimbra!?
Meti-me no carro como um autómato e saí para Coimbra e durante a viagem, em telefonemas múltiplos tentei perceber o que se tinha passado.
Só em Coimbra, em conversa com a médica (brasileira) que lhe prestou a última assistência, percebi.
Tinham-no enviado do hospital da Guarda para o hospital de Coimbra, onde chegou cerca das 3 da manhã. Sem passarem cartão aos familiares.
A médica não soube explicar o que ele tinha, porque não descobriu qualquer relatório médico na recepção e apenas me disse que quando ela entrou, às 10 horas, recebeu o doente vindo da cirurgia (!), mas onde nada lhe tinha sido feito (!!).
Estava já em estado crítico e às 10:30h teve a primeira paragem cardíaca.
Foi reanimado 3 vezes, até que o coração deixou de bater às 11 horas.
Causa da morte: DESCONHECIDA.
Portanto:
Não se sabe porque foi enviado para Coimbra de madrugada sem o conhecimento dos familiares.
Não se sabe o que lhe fizeram na Guarda - presume-se que nada pois nem chegou a entrar na especialidade para a qual foi enviado.
Não se sabe o que lhe fizeram em Coimbra até às 10 da manhã - durante as horas em que supostamente terá estado na cirurgia. Presume-se que nada, tal como durante todo o dia 22, pois nada consta do seu relatório médico.
Sendo certo que não existem relatórios de medidas tomadas em nenhuma circunstância em Coimbra até às 10 da manhã, sou forçado a concluir que subsiste durante 3 dias seguidos negligência grave, a somar à negligência dos transportes sucessivos a que foi submetido um doente em estado de debilidade extrema.
É claro que não é o soro que cura um doente que vem diagnosticado com possibilidade de pneumonia - à qual não foi tratado - ou enfarte de miocárdio - ao qual também não foi tratado.
Nada lhe fizeram. A não ser deixá-lo entendido numa maca num corredor dos HUC a definhar visivelmente.
E a mim, questionarem-me por ter tirado fotografias.
Se usassem a mesma diligência para tratar os doentes, o meu pai estaria vivo.
Na participação que fizemos no DIAP eu e o meu irmão "exigimos" a realização da autópsia, corroborando o pedido da médica que ficou extremamente chocada quando lhe dissemos que o doente tinha saído dali, daquele mesmo serviço, meras 27 horas antes.
Não sabia! Não tinha qualquer registo nesse sentido!
E que, depois disso, o doente já tinha feito mais de 320 quilómetros e corrido mais 2 hospitais até chegar novamente ao ponto de partida, numa dança macabra entre hospitais que terá ajudado bastante ao trágico desfecho.
O Ministério Público acedeu e a autópsia foi realizada no dia 25 às 11 da manhã.
Aguardam-se as conclusões para se saber aquilo que nenhum médico quis saber, pelo menos em Coimbra: De que padecia aquele doente?
Assim se acaba uma vida, inglória e desnecessáriamente, por um acumular de negligências, quando bastava um pouco de cuidado de apenas um médico ou enfermeiro para que tivessem tido o bom senso de não enviarem o doente, naquele estado, muito mais debilitado do que entrou, com dores muito mais agravadas e sem poder ingerir nem sequer uma gota de água, de volta para Seia.
Por muito que paguem esta negligência, nada fará ressuscitar o meu pai.
Escrevo o que aconteceu para alertar quem ler esta triste história para o estado a que chegaram os Hospitais em Portugal.
Para terminar, o pior: toda a gente conhecida que eu lá tinha, no Hospital, me perguntou: mas porque é que tu não me deste um toque? Eu acompanhava o teu pai e a coisa de certeza que não acabava assim...
Isto é que dói.
Descobrir que a medicina, no Serviço Nacional de Saúde, só funciona minimamente quando há "conhecimentos" e "amizades" entre o corpo clínico.
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