O calendário devia ter parado ali, para Portugal.
Tinha vindo a correr tudo muito mal desde 1926 e o Estado Novo tinha chegado ao fim.
A máquina neo-fascista estava gripada e o movimento corporativista militar que tinha falhado nas Caldas não havia sido desmontado, porque o regime já nem para tal mostrava vigor.
Não era um regime, a bem dizer.
Havia 2 células militarmente activas: a GNR no Carmo e meia dúzia de agentes da PIDE, na António Maria Cardoso. Um deles (nunca saberemos qual) terá entrado em pânico e disparado atabalhoadamente da janela sobre a multidão, matando 4 e ferindo 18 - as baixas do golpe militar de Abril.
Menos mal.
Uma "revolução" com o mesmo nr de mortos de um acidente na IP4, prenunciava um futuro livre e risonho para um Portugal cinquenta anos atrasado relativamente à Europa desenvolvida.
*A Liberdade que transformou fascistas em democratas*
Mas não parou aí o calendário.
E apenas algumas horas após a consciencialização da irreversibilidade do golpe, houve logo quem se aproveitasse da confusão geral para "passar" para o lado certo da História.
Chamaram-lhes os "fachos" (diminuitivo alfacinha para fascistas).
Situacionistas convictos às 3 da manhã, eram eloquentes democratas e paladinos da liberdade às 4 da tarde.
Voltaram quase todos ao aparelho de estado.
Hoje estão mortos ou reformados, apenas porque tiveram um azar nítido temporal.
Abril calhou em 74, tarde demais para as suas idades (50s e 60s) e para a retoma integral das suas carreiras.
Fossem mais novos e ainda chegavam a Primeiro-Ministros nos nossos dias.
*O Verão Quente que poderia ter sido tórrido*
De uma ditadura exausta, com 48 anos de velhice, num contexto europeu que nada tinha de similar (com a excepção do regime de Franco, aqui ao lado, mais austero mas muito mais moderno e empreendedor), com um pseudo-império de mentirinha preso por arames e não reconhecido por ninguém, uma guerra não-ganhável em 3 frentes que tinha produzido, em 13 anos, 9.000 jovens mortos e mais de 30.000 estropiados para a vida, toda a Europa e mais o líder do terror internacional H Kissinger esperavam o fim formal.
Que ocorreu nesse Abril.
E àquele pântano político (talvez só comparável ao de hoje) sucedeu-se a Liberdade e um período muito conturbado da nossa História em que Portugal esteve, por mais que uma vez, à beira da guerra civil.
O 25 de Novembro e o 11 de Março não foram, contudo, suficientes para lançar este país na desgraça que ocorreu em Angola e Moçambique após a descolonização possível.
O verão quente de 75 com as sedes do PCP e do CDS incendiadas alternadamente por todo o país, não teve, felizmente, consequências de maior.
Porque passados muitos saneamentos e autogestões, assaltos aos latifúndios, barricadas populares, tiroteio, bombas e alguns mortos, Portugal acabava por ser mais ou menos o mesmo, e a figura firme e austera de Ramalho Eanes estabilizava, em 76, este país duplamente libertado, apagando o fogo da guerra fratricida que se insinuava.
Nunca lhe agradeceram, os políticos profissionais.
Hoje, já quase ninguém se lembra dele.
*Passámos a poder escolher, de entre os que foram previamente escolhidos*
Muitos anos, poucas décadas e bastantes peripécias depois, a sociedade portuguesa está substancialmente mudada.
Antigamente crónica nas manif.s do 25 de Abril, a populaça está hoje toda na praia, a apanhar bronze, sem nadadores salvadores por perto.
A democracia – o pior sistema político, tirando todos os outros – continua a fazer coxear este país que não corre, como os demais países europeus, mas também não está parado, como antigamente.
Este regime português não é hoje carne, nem é peixe.
É um molhe de bróculos, sem "substracto" para dar ao povo. Física, moral ou Culturalmente.
Mas alimenta-se bem a si próprio, ainda assim.
Porque o verdadeiro regime em vigor desde Abril, nunca foi a tão propalada Democracia orgânica.
Até 25, Portugal viveu uma Ditadura e a partir de 26, uma Partidocracia, que dura até aos nossos dias.
Portugal só foi um país verdadeiramente livre no dia da revolução.
Depois da fuga da tirania, e antes da chegada da corrupção-pobre.
- Então porque é que não vivemos numa democracia formal? Pergunta o leitor que conseguiu chegar até aqui.
(A propósito: Os meus parabéns! Você pertence a uma minoria ínfima da população – os utentes cerebrais. A esmagadora maioria daqueles cujo voto anula o seu, desistem de qualquer leitura ao fim do primeiro período com 1 oração intercalar. Essa imensa maioria analfabeta funcional é denominada pela TVI de: "Os portugueses").
- Porque o povo só pode escolher quem já foi escolhido para se apresentar às eleições. Respondo eu.
E nunca são os melhores, os candidatos que se perfilam.
Explico porquê.
"Quem é que temos para o Governo Civil?"
Invariavelmente neutros, à cautela, em Abril, deixaram passar o período de grande convulsão de 75 e 76 e o perigo que representava defender uma posição política nesses tempos conturbados em que, como hoje, a cobardia era a melhor conselheira e de heróis espancados não rezava a história.
Depois, quando os ânimos acalmaram e a política começou a dar dinheiro, foi vê-los a "assaltar o poder" em todos os partidos e em todos os locais.
Não são nunca os mais honestos, porque têm que passar a vida a mover influências para continuarem a ser os escolhidos pelo Partido, numa luta diária e desgastante contra os seus concorrentes internos.
Não são também os mais brilhantes, porque se o fossem, a sua inteligência não lhes permitiria submeterem-se a todo o tipo de indignidades e golpes baixos, para continuarem a pôr-se em bicos de pés.
São, possivelmente, os mais espertos (perspicazes) – mas a esperteza é o recurso medíocre daqueles que não foram bafejados intelectualmente.
Basta analisar o caso notável do comentador político/futeboleiro Pedro Santana Lopes ou o do comentador político/cibernoso José Magalhães, para se perceber de imediato que até para se nascer não-idiota é preciso ter sorte.
Portanto, ao votar, o povo está a inserir um vírus no sistema – o menor. Mas há mais.
*O mecanismo de perpetuação da corrupção-pobre*
Ao votar, o povo apenas elege aqueles que vão colocar os amigos e os seus homens de confiança nos centros de controle da democracia.
A proliferação desta corrupção pobre (por contraponto às corrupções propriamente ditas - a da alta finança e a do colarinho branco - de que falaremos em "E quem não for corrupto é burro") – a corrupção da migalha e da continuidade da sobrevivência em "jobs", é social e ferozmente combatida pela inveja dos vizinhos que não fazem parte desses amigos e que não pertencem a esse clube, simplesmente porque ninguém teve o bom senso de os convidar.
Esta situação e noção de exclusão conduz invariavelmente a um "sindicato dos desprezados" que encetará logo que organizado uma solidária e despeitada luta de combate à corrupção-pobre da côr vigente, formando, estes, um novo lobbie de candidatos a corruptos-pobres de sinal contrário, à espera da sua vez para usufruirem da migalha apropriada pelos antecessores, o que tem acontecido de 2 em 2 eleições legislativas, em Portugal desde Abril.
Verifico ainda que a corrupção-pobre perpetuada neste regime partidocrático se manifesta, em cada momento, com uma dimensão inversamente proporcional à da tensão social existente, e a prova disto é que em períodos de revolução e cataclismo, ela praticamente não é detectável.
Aprofundaremos este conceito mais tarde no texto: "Quanto maior a acalmia, mais se orienta a Maria"
*Por outro lado, qual a verdadeira idoneidade de quem vota, neste país?*
Uma população constituída por 48% de analfabetos funcionais deve votar?
Tem consciência política e social do seu acto?
Não tem, por definição.
Está a decidir um rumo político para o país quando nem sequer tem conhecimento das linhas de força dessa política?
Está, concerteza.
Mas então se para tirar uma simples carta de condução, arranjar um emprego, para desenvolver qualquer tipo de actividade socialmente autorizada é necessário possuir pré-requisitos, porque é que para decidir o futuro de uma nação basta estar vivo?
E nem é preciso estar consciente… até os doentes mentais nos hospitais psiquiátricos podem votar…
E agora, por força da lei comunitária, também os imigrantes votam, o que é sempre preferível aos alienados.
Portanto, ao votar, uma grande parte do povo está a inserir paralelamente no sistema um novo desvio, este bem maior: está a escolher sem fundamentação programática, sem alicerce histórico-cultural, sem interiorização do leque de escolhas.
Em suma: está a votar imbecilmente, e a eleger quem não compreende.
O dramático disto é que cada voto imbecil vai anular um outro voto consciente e muitíssimo ponderado de um sociólogo, de um cientista ou de um professor catedrático, por exemplo.
*É só dos politiqueiros a culpa de continuarmos na cauda, 28 anos depois?*
A minha explicação para o que nos tem vindo a acontecer desde o dia 26 desse longínquo ano, ultrapassa a classe política e, por muito incorrecta que esta afirmação possa ser, politicamente falando, defendo que a culpa é maioritariamente do povo.
E baseia-se nesta singela evidência:
Sabemos que, antes e depois de Abril, o número de imbecis tem vindo sistemáticamente a superar de forma esmagadora o dos intelectuais, a ponto de, hoje em dia, a TVI ser a televisão preferida dos "portugueses".
As causas desta situação degradante são múltiplas e prendem-se com muitos factores, de entre os quais enumero o facilitismo escolar, a falta de formação exigível nas profissões e na vida activa e, no fundo, um costumeiro laxismo instituído desde há muitas décadas e que nunca foi abandonado até hoje – ao contrário, teve o seu periodo áureo durante o Governo anterior.
Portugal sempre foi um país de desenrascados e não um país de operários especializados. O clima tem também a sua quota-parte nesta história, dado que somos a África da Europa mas, como no resto, nem isso sabemos aproveitar. Deixemos esta discussão para mais tarde.
De entre estes idiotas, os mais atrevidos, não contentes com o facto de serem perfeitos mentecaptos, perceberam que nenhum mal adicional lhes sobrevinha se o mostrassem, como fez o Zé Cabra, o Tino de Rans ou a Gisela do Masterplan.
Pelo contrário; como estão rodeados dos seus iguais, por mais asneiras que digam ou façam, não há ninguém à sua volta que as detecte e os corrija.
Chegados à era dos "reality shows" estes cromos são verdadeiros petiscos para as estações de televisão, que aumentam dramaticamente as suas audiências poupando milhares nos "pugramas" e arrecadando milhões durante os écrans publicitários dessas horas "nobres".
É o ovo de Colombo, mas também a verdadeira Maldição de Midas das televisões modernas.
É que a partir de agora, só podem apresentar pior. Mais baixo, mais porco, mais analfabeto, mais miserável, mais animal.
Nunca igual, pois igual já está visto e deixa de "cativar" o povão a que se dirigem.
E o povo intelectualmente menos robusto vai-se revendo diariamente naquela negra incultura protagonizada por estes autênticos ícones da estupidez popular.
O que lhes vai progressiva e subliminarmente instituindo como "normal" um padrão comportamental e civilizacional que se encontra cada vez mais desenquadrado do da Europa contemporânea.
Ora, um povo auto-atrasado não suporta nem se adapta culturalmente a rápidas modificações na estrutura organizacional social, mesmo que a classe política de serviço a pretendesse implementar.
Estas terão fatalmente que ser impostas, sem negociação. E terão custos mediáticos gravíssimos que se pagarão na primeira oportunidade, nas urnas.
É uma pescadinha de rabo-na-boca.
Quem o fizer, tem que perceber que vai pagar em seguida e vai ser expulso pelo povo cujo futuro protegeu. É preciso, portanto, que apareça um líder com a coragem e força interior capazes de entender e aceitar esta evidência e este ingrato Dever.
Só esses homens ou mulheres corajosos poderão libertar Portugal do seu 3ª jugo desde o 26 de Abril: o da corrupção-pobre e estupidificação das massas..
Não descortino, num futuro próximo, infelizmente, nenhum candidato a crucificado.
Nem o Cavaco …
João Tilly
25/4/2002