Como é que se pode viver sem se dizer a verdade?
"Não pode haver boa justiça num país de analfabetos".
Trindade Coelho tentou EDUCAR, a suas expensas, o povo português... mas acabou suicidando-se!
Trindade Coelho (1861-1908), Procurador Régio - o equivalente a Procurador Geral da República - é o primeiro mártir da sua crença de que seria possível instruir e politizar o povo português.
Nessa tentativa e Missão produziu e pagou do seu bolso cartilhas que distribuiu pelas escolas, na senda de João de Deus. Mas de nada lhe (nem a nós) serviu.
Trindade Coelho começou a sua carreira como delegado do Procurador no Sabugal. Em pouco tempo pôs o caos processual da comarca em ordem.
Por isso foi promovido para Portalegre onde livrou um condenado da pena perpétua, porque estava claramente inocente.
Em todo o alto Alentejo se instalou a fama do Delegado de Portalegre. O Justiceiro dos pobres.
Em consequência disso, o Ministro da Justiça nomeia-o para uma comarca maior. Uma comarca com comboio: Ovar.
Ficou surpreso, mas logo as dúvidas se lhe dissiparam com o que o ministro lhe propôs, na semana seguinte: ser deputado.
- Ó sr ministro: desculpe mas eu isso não aceito! Ser político é uma porcaria. Eu não quero ser político!
- Ó Homem: mas olhe que por esta via de deputado você sobe já a juiz - o mais jovem juiz de Portugal! - e por este caminho chega ao Supremo! - disse-lhe o ministro.
- Chegue onde chegar. Eu não quero ser político! A política repugna-me. Eu quero ser magistrado! Eu estou ao serviço da Justiça. Não da política. E é preciso escolher: ou justiça ou política. Os dois proveitos não cabem no mesmo saco. Eu sou pela Justiça e não sou pela política!
O ministro, admiradíssimo com a sua convicção e verticalidade, nomeia-o para Lisboa como delegado do Procurador Régio - o equivalente a procurador Geral da República.
Durante 17 anos, desde 1890 até 1907, Trindade Coelho será delegado do Procurador Régio, e acredita que isso lhe vai dar a possibilidade de emendar os erros e atrasos da justiça portuguesa.
Durante esses anos, ele dedica-se, com toda a sua alma, a corrigir o Direito. Publica os "Recursos Finais do Direito Penal", as "Anotações ao Código Penal", o "Regulamento do Ministério Público" e foi um dos fundadores da "Revista de Direito e Jurisprudência".
Ele tenta criar o Novo Direito Português. Especialmente sobre direito processual penal.
A preocupação de Trindade Coelho é a de que não se condenem mais inocentes.
Mas o tempo passou e Coelho foi-se fartando de ver testemunhas a jurar mentira, ver condenados pobres que estavam inocentes, e ele acaba por perceber o essencial:
"Não pode haver boa justiça num país de analfabetos.
Este país não precisa de justiça. Antes, precisa é de Instrução".
Daí a sua batalha seguinte pela reeducação Nacional.
Imprime e publica folhetos para a Instrução popular ao serviço do povo.
Publica e oferece cartilhas muito simples que levem o povo a cultivar-se.
Dele veio a parábola dos 7 vimes: uma, qualquer criança parte. Mas quando se juntam 7 vimes, ninguém as consegue partir.
Defendia uma Nação UNA contra os partidos. Porque os partidos são isso mesmo: os que "partem" a Nação!
O seu partido era Portugal.
Publicou "Os remédios contra a usura", a "Cartilha do Povo", "o ABC do povo", depois os "Elementos apara uma educação cívica", o "Pão Nosso - leituras para o povo". A "Enciclopédia para uso do povo", as "Leituras para a 1ª, 2ª, e 3ª classe".
E tudo isto sem qualquer interesse económico.
Pelo contrário: para publicar e oferecer estas publicações, acabou por ter que vender os poucos terrenos de herança que o seu laborioso Pai lhe tinha deixado.
Ia trabalhando e empobrecendo alegremente.
Até que, em 1906, publicou o seu "Manual Político do Cidadão Português".
Nele explica o que são as pedras basilares da Organização do Estado: o que é o Rei, o poder judicial, o que é o governo, o que é o parlamento, o que são os partidos...
Trata-se de um manual em que ele tenta consciencializar o povo português sobre o que "é" a realidade política.
Simplesmente, Trindade Coelho era absolutamente incapaz de mentir.
E quando chega ao último capítulo sobre os partidos políticos do seu tempo - os grandes partidos da monarquia: o partido Progressista, o partido Regenerador, o jovem partido Republicano do senense Afonso Costa - ele publica expressões extremamente cruéis sobre esses partidos.
Para ele, os partidos são profundamente corruptos, dizem que querem coisas diferentes mas querem todos o mesmo.
E por fim publica as opiniões de dois escritores franceses que defendem que a vida partidária em Portugal é uma autêntica vergonha.
Recordo os leitores que estamos em 1906. Já lá vão 111 anos.
Ora: um livro destes, publicado por um delegado do Procurador Régio não poderia ser do agradado do próprio Procurador, que de imediato o chamou à pedra e lhe disse que isso não podia ser.
É preciso dizer-se que o Procurador Régio era António Cândido, um homem sério, honesto, íntegro e de grande carácter.
Mas não podia deixar de chamar a atenção a Trindade Coelho pela sua veleidade.
A Monarquia, embora decadente, ainda estava em vigor e havia coisas - tal como hoje parece ainda haver - que não podiam ser ditas publicamente.
Trindade Coelho, impedido assim de publicar o que pensa, pede a demissão, no ano seguinte, em 1907, de delegado de Procurador Régio, a única profissão que tinha tido na sua vida.
Viu-se assim privado de emprego, e por consequência de um vencimento.
Não tinha outros rendimentos e chegou a não ter dinheiro para o pão.
De maneira que até fome passou.
Para além disso, Trindade Coelho era um homem muito dado a depressões.
E isto de viver sem poder dizer a verdade não lhe era possível.
O que conduziu ao trágico fim desta história.
No verão de 1908, 2 anos antes da Instauração da República que amanhã se comemora, acabou por se suicidar com um tiro na cabeça.
Assim acabou a grande batalha que travou, ao longo da sua vida, para salvar Portugal do analfabetismo, do obscurantismo, da estupidez e do caciquismo.
Essa batalha não foi ele quem a ganhou.
E ainda hoje não está ganha.