1.16.2005

Os Contos da Laura Narciso - O Cântico do Mensageiro

Inicio aqui a publicação, em rigoroso exclusivo e primeira mão, dos contos da Laura.
Uma coisa notável. Que deve ser lida por quem tenha tempo e goste de saborear uma escrita tão apaixonada quanto eficaz.
Este primeiro conto comoveu-me.
Espero que aconteça algo de semelhante convosco.
Sai-se dele com a alma lavada e uma vontade incrível de ser feliz.
Experimentem, que não se arrependerão.
Eu garanto.






O Cântico do Mensageiro


Na vila piscatória de Moliceiros, todos conheciam o mestre Leonardo Galvão. Por um lado, porque o seu nome evocava os Mendonça de Galvão, uma família aristocrática, arreigada há já dois séculos àquele lugarejo, onde vivia numa casa solarenga junto ao rio. Mas a fama do mestre, essa muito merecida, decorria, sobretudo, do seu temperamento bonacheirão, homem sempre pronto a ajudar os outros, de gargalhada fácil e de bochechas ligeiramente ruborizadas.
De profissão pescador, o mestre Leonardo divertia-se nas tertúlias de amigos, sempre que corriam histórias de curiosos chegados à povoação, ávidos por conhecerem de perto membros de uma tão longa dinastia. Os amigos não se descaíam nunca e lá entroncavam o nosso mestre pescador naquela família já mítica e cada um inventava mil histórias verosímeis, justificando até porque um Mendonça de Galvão teria preferido abdicar dessa condição para se tornar um humilde pescador, que vivia numa casa de madeira, cujos pilares corroídos mergulhavam profundamente nas águas plácidas do rio Cávado. Os interlocutores jamais duvidaram da veracidade destas fábulas, antes ajudaram a criar uma lenda à volta do mestre e matizaram de uma cumplicidade quase infantil as conversas daqueles amigos nos serões de inverno.

O mestre Leonardo era um homem alto e opulento. Possuía uma cabeleira grisalha farta e uns olhos profundamente azuis, da cor do mar que lá adiante engolia o rio, onde ele, o Zé Maria, o António Caxias e o Quim “Maneta” costumavam reunir-se com os seus barcos para iniciarem mais uma pescaria.
O mar, dizia o mestre, era a sua segunda paixão. Porque a primeira era, como sempre fora, e sempre seria, a sua Salomé, a mulher que desposara há trinta anos e com quem jurara trilhar os caminhos sinuosos desta vida. Amava hoje aquela mulher ainda com a mesma paixão dos primeiros tempos de juventude e era ela a sua bússola, o seu porto de abrigo, porque se assim não fosse, o feitiço que o mar exercia sobre ele há muito o teria levado por esse mundo fora, sem criar afectos ou construir âncoras num qualquer cais. Nunca haviam tido filhos por impossibilidade de Salomé, mas apesar do infortúnio, a cumplicidade crescente entre ambos prolongou indefinidamente aquele namoro de adolescentes.
O cachimbo e um vozeirão alegre completavam o retrato do nosso mestre, um homem do mar, uma personagem pitoresca e, sobretudo, um ser humano maravilhoso. Maravilhoso pelo seu carácter, mas também pelas suas profundas crenças de que o homem é um ser em evolução espiritual, de que todos nós estamos na Terra para nos aperfeiçoarmos e andamos todos à procura do nosso caminho, do trilho que nos conduzirá a um estado de plenitude em que conseguiremos, finalmente, fundirmo-nos com o transcendental. Naturalmente, o mestre Leonardo não se expressava bem por estas palavras, porque não possuía conhecimentos livrescos para tanto, mas ele sentia tudo isto; ele dizia frequentemente a Salomé e aos seus companheiros de labuta que era um homem imensamente feliz, porque sentia que estava a cumprir a missão que lhe tinha sido incumbida nesta vida e porque, acima de tudo, nada o preenchia mais do que fazer nascer um sorriso nos lábios de todos os que viessem até ele.
Um dia, porém, tudo mudou. Salomé adoecera de repente, sem que os médicos pudessem fazer alguma coisa para debelar o mal que se instalara, silenciosamente, nos seus ossos e a aprisionava a uma cama, entre dores lancinantes. Durante a maior parte do tempo, Salomé estava num limbo onde existiam vozes indistintas, imagens fugidias em que os tempos e as personagens se misturavam, mas a espaços recuperava alguma consciência e, chamando pelo seu Leonardo, com a respiração entrecortada, dizia: “Dá-lhe o meu nome, querido. Não te esqueças, dá-lhe o meu nome.” Leonardo não compreendia o significado destas palavras enigmáticas, mas sentia-se atemorizado, porque nesses momentos Salomé falava como que tomada por um rasgo de clarividência. Em seguida, ele perguntava-lhe: “A quem, meu anjo? De quem falas? A quem é que eu vou dar o teu nome?” Mas Salomé já não o ouvia; mergulhava nas águas da doce inconsciência sob o efeito da morfina.
Passadas duas semanas de longa agonia, Salomé faleceu. E o mestre Leonardo sentiu-se morrer, também. Porque a sua bússola havia desaparecido, o seu porto de abrigo havia sido brutalmente destruído.
Cedo o mestre se entregou ao poder do álcool para esquecer o desgosto. Os amigos procuravam-no amiúde, consternados pela dor que transfigurara o semblante outrora jovial do fiel Leonardo. Ele estava, de facto, irreconhecível; prostrado pelo sofrimento atroz, entregou-se à embriaguez que tudo dissolve e perdeu a noção do tempo. Os dias tornaram-se noites e as noites tornaram-se dias. Por vezes, no auge da inconsciência, mergulhava num pranto insuportável e o abismo que se abria à sua frente puxava-o com uma força esmagadora, sugando-o em círculos cada vez mais pequenos, e ele sentia-se submergir, rodopiar, fluir e, por fim, desaparecer. E só então havia paz.
Foi num entardecer, num momento de letargia, que o mestre, agora um espectro do homem que fora, cambaleou até ao alpendre da casa, sobranceiro ao rio, e se sentou pesadamente na sua cadeira de baloiço. Olhou para o rio com uns olhos vazios. O seu rosto exibia uma barba grisalha, há muito descuidada, e à volta dos olhos e da boca, profundos sulcos marcavam o peso da dor recente. O riso das crianças que brincavam à beira-rio chegava até ele como uma melodia distante. Leonardo sentiu-se despertar à medida que ouvia os sons e os risos misturados com o chapinhar das mãozitas na água e foi então que ele contemplou... um cisne azul, lindo como ele jamais vira, bailava em círculos harmoniosos e entoava um cântico doce. Enlevado pela carícia da música, sentiu-se transportado a outros tempos. Aos tempos em que comungava de uma paz única, de uma felicidade tranquila irradiada pela presença constante de Salomé.
O cisne azul continuou a sua loa por um tempo que lhe pareceu infinito até que a noite caiu. Pouco depois a miragem desvaneceu-se e só então o mestre se interrogou sobre aquela visão. Sentiu-se estranhamente perturbado pelas emoções que aquele cântico desencadeara no seu peito, sentimentos que ele julgava ter já perdido. Não teve coragem para partilhar o insólito com os amigos, porque seria compreendido como um devaneio de um homem doente, mas secretamente sentiu que aquele cisne viera para lhe transmitir uma mensagem...
Os encontros do nosso mestre com o cisne azul prolongaram-se por vários entardeceres e era já com alegria e expectativa que Leonardo aguardava a vinda do seu mensageiro todos os dias, como quem pressente a chegada de uma missiva da amada. Embora triste, o mestre Leonardo regressava agora, lentamente, ao mundo dos seus convivas e abandonava o seu cárcere de solidão. Nunca ousou, porém, contar o seu segredo a ninguém.
Alguns dias mais tarde, após uma forte bátega de água caída do céu, um arco-íris resplandecente despertou a natureza escondida e, de novo, ouviam-se os passarinhos nos ramos que ondulavam junto à cadeira de baloiço do mestre. Fumando o seu cachimbo, Leonardo perscrutava os sons do rio e do mar lá longe. O cisne azul surgiu distante, distante e foi-se aproximando até ser quase possível o mestre sentir o bater da sua plumagem na água, desenhando circunferências que se iam agigantando à medida que se afastavam até à margem do rio. E foi então que o cisne falou:
- Leonardo, não sofras mais. Tu és um homem apaixonado pela vida e tens tanto para dar aos outros... Em breve receberás uma dádiva dos céus. Não te esqueças de dar-lhe o meu nome.
Proferindo estas últimas palavras, o cisne principiou um cântico melodioso ao mesmo tempo que se afastava lentamente no horizonte.
O significado daquela mensagem reverberou de imediato no coração daquele homem, embora ele não compreendesse a que dádiva o seu mensageiro se referira. Não te esqueças de dar-lhe o meu nome – as últimas palavras de Salomé ecoavam agora na sua mente...
Nessa noite, ao serão, acordou sobressaltado: alguém batera à porta de entrada, mas não se identificara. O mestre Leonardo dirigiu-se de imediato à janela da sala e, não vendo ninguém, acudiu intrigado à porta: nos primeiros momentos, enquanto os seus olhos se habituavam à escuridão da noite, apenas viu os fantasmas dos ramos no soalho do alpendre e o reflexo do luar na água cristalina, mas pouco depois, olhando para baixo, viu um berço. Nele repousava, serenamente, uma menina que o contemplava com uns olhos celestiais, e os seus lábios rosados esboçaram, instintivamente, um sorriso, dir-se-ia, de reconhecimento.
Sentindo-se invadido por uma felicidade indescritível, o mestre Leonardo compreendeu que a sua Salomé nunca o deixara e sempre o acompanharia até ao fim do seu caminho...

Sem comentários: