8.17.2020

Edição para os apoiantes do canal João Tilly no Youtube

“A troca do Rei”

Capítulo 1 – O Nascimento do Rei

Exterior do castelo de Guimarães numa noite de Invernia no longínquo ano de 1111. Pôs-se uma tempestade impressionante que lança sobre as paredes da fortaleza toneladas de àgua e vento. Uma chuvada copiosa e oblíqua entrecortada com relâmpagos sem fim pintam toda a paisagem de um imenso branco mortiço e medonho.

O super monarca Afonso VI, filho do Grande Fernando Magno, intitula-se o Imperador das Hispânias: Castela, Leão e Galiza. Mas será isso verdade?

Não.
Uma vasta região do Centro e Sul da Península continua sob o domínio dos muçulmanos que em 711 invadiram a Península Ibérica. Para os expulsar definitivamente, Afonso VI precisa do contributo dos modernos guerreiros estrangeiros que possuem uma tecnologia bélica superior: os Templários.

Para o conseguir, Afonso VI casa as suas duas filhas com dois grandes guerreiros oriundos da Borgonha com ligações ao Papa e aos Templários. Urraca, a legítima, casa com Raimundo; e Teresa, a bastarda, com Henrique.

Esta história começa com uma dessas duas filhas: a não legítima. A D. Teresa.

No corredor coberto com uma longa passadeira, 10 archotes ardem de cada lado, espaçados e presos às paredes. Arcas de madeira nobre e austera servem

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de cadeiras colocadas de 10 em 10 metros de um dos lados. E veem-se armaduras com o mesmo espaçamento do outro.

D. Henrique de Borgonha, nervoso e impaciente, caminha de um lado para o outro. Ouvem-se os trovões lá fora.

- Que tempo miserável! Tinha que calhar logo hoje...

O escudeiro tenta acalmá-lo.

- Calma, Meu Senhor. Tudo há de correr pelo melhor... Deus não permitirá que...

O escudeiro é interrompido pelo choro de um bebé.

- Já nasceu! Deus é grande! Exclama o Fidalgo. E de imediato ajoelha, benzendo-se inclinando a cabeça. Um momento depois, levanta-se de um salto:

- E Teresa? Como está a minha Senhora??

D. Henrique corre para a porta do quarto, mas é travado por uma jovem aia

- Meu Senhor: não podeis entrar ainda!

D. Henrique recua.

- Mas D. Teresa está bem? Como está a minha mulher?

- Está bem! Não cuideis. Mãe e filho estão bem com a Graça de D...

- Filho! É um rapaz! Exclama D. Henrique, cheio de alegria!

E ajoelha novamente a agradecer.

- Obrigado, meu Deus! Dais-me um varão logo no primeiro filho! Afinal a tempestade foi minha amiga!

Mas logo algo lhe parece estranho. Há um grande silêncio. Dentro do quarto não se ouve uma voz. Não é normal.

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D. Henrique corre novamente para a porta do quarto e esmurra-a insistentemente.
- Então? Que se passa? Deixai-me entrar e ver o meu filho!

De lá de dentro vem uma voz trémula:

- S... só um momento, Meu Senhor. Está quase pronto...

D. Henrique, estranhando:

- Mas porquê todo este silêncio? Porque não vos rides e cantais? É um varão! Porque não cantais de alegria?!

A porta abre-se lentamente. Ao fundo do quarto, à esquerda da cama com as respectivas cortinas (dossel) uma velha parteira olha fixamente o chão. Teresa, a mãe, tem um olhar ausente, como que ainda não consciente de que já nasceu o seu filho.

A aia mais velha tem um bebé ao colo, enrolado num cobertor enquanto lhe limpa a face com um pano suave. O bebé tenta chorar.

- Aia! Dai-me o menino! O meu filho!

A aia passa cuidadosamente o recém-nascido para os braços do pai. A criança ainda tem vestígios do parto.

- Oh que Ventura a minha! Que tesouro! O meu filho! Será o Rei de Portucale! Aia: tirai-lhe o cobertor. Deixai-mo ver completo!

A aia, visivelmente atrapalhada:

- Meu Senhor: tendes muito tempo para isso. Não o deixemos apanhar frio. Pode apanhar o mal.

- Sim... tendes razão. Agasalhai-o, sim. Amanhã ou depois confirmarei. E, voltando-se rapidamente:

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- Mas asseguraste-te que era MESMO um Rapaz!? Não me estais a mentir? - Não, Meu Senhor! Seria lá capaz disso! É um rapaz sim que vos afianço com estes dois olhos que o viram. Eu vos garanto que é um varão!

- E a Senhora D. Teresa? Não fala... parece ausente...

Não, meu Senhor. Está apenas abalada. É o primeiro filho. Muitas nem aguentam. Deixai-a repousar.

- Está bem. Amanhã voltarei para ver o meu filho inteiro e confirmar com os meus olhos a ventura que Deus me deu...

D. Henrique sai do quarto. As aias olham uma para a outra desalentadas e a velha parteira dirige-se a elas:

- Foi a vontade de Deus. O menino sobreviverá, apesar de tudo. D. Teresa olha fixamente o teto do quarto, sem expressão.

No dia seguinte na sala de jantar, D. Henrique está sentado a uma das cabeceiras. Uma imensa lareira atrás de si exibe uma armadura de cada lado. Por cima da lareira uma tapeçaria com cenas de caça. Sobre a mesa, com doze metros de comprimento e dois de largura, estão colocados três castiçais de doze velas espaçados regularmente. Aos pés de D. Henrique, dois majestosos galgos.

- Escudeiro! Manda a aia vir trazer-me o meu filho. Quero vê-lo antes de partir!

O escudeiro sai e passados alguns momentos regressa com a Aia jovem que traz um bebé nos braços.

- Senhor, o menino estava a dormir. Não achais melhor que o deixeis descansar que logo após voltardes da caçada ele estará mais desperto...?

- Nada disso. Quero ver agora e já o meu filho que Deus me deu e ver como ele é perfeitinho e completo. O Futuro Rei desta que há de ser uma Grande Nação...

A aia jovem, envergonhada:

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- Bem se o desejais tanto... ele aqui está. Henrique toma o menino nos braços.

- Mas ele está vestido como ontem! Retirai-lhe a roupa que eu quero ver de que é feito o futuro Rei!

A aia, muito a medo, desenrola o cobertor até que por fim o menino fica completamente nu, revelando o seu corpo inteiro.

- É Homem sim! Olha aqui, Aia!... mas... espera lá... As pernas do menino são pequeníssimas! Isto é normal, Aia?

A jovem aia, balbuciando:

- Meu Senhor, eu... eu não tenho ainda muita experiência com recém-nascidos... ainda só vi nascer dois ou três, mas acho que sim...

D. Henrique, abanando a cabeça:
- Não pode ser. Escudeiro: Chama a parteira!

O Escudeiro sai da sala e poucos momentos depois aparece acompanhado pela velha parteira.

- Parteira: explica-me! Isto é normal? As pernas do meu filho mal se veem... o que é isto??

- Meu Senhor... eu não sei bem...

- Não sabes??? Tu que já trouxeste ao mundo centenas de crianças, não sabes? Tu que já viste nascer e morrer tanta gente? Diz-me a verdade já, velha! - Bem, meu Senhor... (e desata a chorar) eu não tive a culpa! Sei que me vai mandar matar mas eu não tive culpa. O parto até correu bem, a criança nasceu com facilidade... mas acontece que... que...

D. Henrique (espumando de raiva):

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- Acontece o quê? Fala ou eu juro-te por Deus que não voltarás a ver nascer o Sol!

- Meu Senhor (irrompendo em choro) mas eu não tive a culpa... eu não fiz nada... a criança nasceu assim normalmente...

D. Henrique (cada vez mais alterado):

- Assim??? Mas assim como?? O que tem o meu filho? Diz-me, mulher, ou eu juro que...

- O vosso filho nasceu “tolheito” das pernas. Jamais conseguirá andar... nem sequer montar...

D. Henrique, chocado e incrédulo:
- Quê? Que me dizes? O futuro Rei não vai conseguir caminhar? Velha parteira (chorando):

- Não, Vossa senhoria. Eu já vi nascer muitos assim com as perninhas “tolheitas”. São pequenas demais e nem sequer são iguais. Não ganharão carne nem força. Vosso filho jamais poderá caminhar pelo seu próprio pé...

E, em convulsão, atira-se de joelhos às pernas de D. Henrique que continuava incrédulo a olhar para o infinito.

- Mas a culpa não foi minha! Por favor, poupai-me! Eu não fiz nada de errado e Deus é minha testemunha que eu não fiz nada de errado!

D. Henrique, por seu lado, tinha ficado estático. Hirto. Olhos baços, sem expressão. O Escudeiro, assustado:

- Senhor: estais bem?

D. Henrique interrompe o choro da velha que se ajoelhava a seus pés suplicando misericórdia. E com voz grave e cava pergunta:

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- Velha: ouve-me. Não há nada a fazer? Nunca viste nenhum menino assim nascido ficar curado?

- Senhor: se vos disser que sim estarei a mentir e Deus castigar-me-á. Só um Milagre de Nosso Senhor poderá curar este menino.

E logo a seguir, esperançosa:

- Mas Senhor: animai-vos! O menino não morrerá, meu Senhor... ele vai viver...

- O Quê?? Ele vai viver?? Pois antes morresse! Que vou eu fazer com um filho aleijado? Que Rei pode ser um Rei aleijado? Nenhum! Ouviste, velha estúpida? Nenhum!

E agarra a velha içando-a no ar...

- Nenhum Rei no Mundo temente a Deus pode ser um aleijado! E este vai ser. Para que serve um Rei assim? Mais valia...

E, visivelmente transtornado, retira a espada da bainha... A Velha parteira suplica:

- Meu Senhor! Parai! Passareis a Vida eterna no Inferno! Não desperdiceis a Vossa Alma que é eterna! Por Amor de Cristo Nosso Senhor!

E suplicava, chorando e tentando proteger a criança que se encontrava novamente nos braços da ama.

- Meu Deus! Meu Deus! Por que dás esta tortura? O menino vai crescer e será sempre um tolhido. Como poderá governar? Desesperava D. Henrique.

E voltando as costas, sai da sala, atirando com a espada para um canto, enquanto o escudeiro, assustadíssimo, sai correndo atrás de si, e os pagens se escapam cada um para seu lado.

A velha parteira ergue os olhos rasos de lágrimas como que implorando um milagre aos Céus. E a aia, a seu lado, chorando com o menino ao colo...

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Na Idade Média quem decide tudo é Deus. Para o bem e para o mal. A população não podia senão resignar-se com os desígnios do Altíssimo. Mas esta era a maior machadada que se poderia ter abatido sobre um Nobre francês, educado segundo os mais modernos padrões do Conhecimento Científico da época e que tinha vindo há pouco tempo para o Condado Portucalense a convite de seu sogro. E que, no fundo, nutria o secreto desejo de ver o seu filho coroado Rei de uma Nova Nação que estava a formar-se e para a qual ele tinha inclusivamente encontrado o nome: Portucale.

Com um filho deficiente – portanto impossibilitado de vir a constituir-se um Rei que se exigia forte guerreiro e hábil cavaleiro, todos os seus planos estavam a ir por água abaixo.

Havia que fazer alguma coisa porque nem uma nova criança resolveria o problema. Enquanto este primogénito estivesse vivo ele seria sempre o futuro Rei, nascesse quem nascesse a seguir. Mas um Rei “tolheito” que nunca poderia ganhar o respeito dos seus súbditos.

A menos que... o destino estivesse a preparar mais algum golpe de teatro que pudesse resolver este aparentemente irresolúvel problema.

O que viria, realmente, a acontecer.

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Capítulo 2 – Egas Moniz e a Educação de Afonso Henriques

Floresta Densa de Guimarães. Em plena caçada. Hermígio Moniz, o velho Senhor de Riba Douro, faz parar o seu cavalo junto de D. Henrique que, na margem de um ribeiro olhava, especado, a sua imagem na água.

Os seus companheiros de caça mantinham respeitosamente uma certa distância, garantindo-lhe assim uma relativa privacidade.

- Henrique: os caminhos do Senhor são duros e tortuosos. Só ele sabe por que nos faz passar por certas provações.

Desmonta do cavalo colocando-lhe a mão no ombro:
- Henrique: não te esqueças do que prometeste ao meu Irmão.

D. Henrique roda a cabeça devagar no sentido de Hermígio e balbucia quase impercetivelmente:

- E achas que ele vai manter o seu pedido, depois... depois de ver a criança? A criança aleijada?

- Os Mistérios do Senhor podem ser insondáveis mas os de Egas são inexistentes. Mantem o que combinaste, Henrique, meu querido Irmão-em- Armas, que o meu outro Irmão, o de sangue, cumprirá a sua parte.

E remata, dando-lhe uma palmada nas costas:

- E agora vamos a eles! Daqui a pouco cai a noite e os javalis já pensam que estamos doentes!

Os cavaleiros partem a todo o galope pela floresta adentro. A caçada é retomada, o galope frenético, as flechas voadoras, a perseguição dos cavaleiros a javalis e veados. D. Henrique cai em pleno ribeiro atingido por um ramo de uma árvore enquanto perseguia uma cria de javali. Gargalhada geral e boa disposição.

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Cai a noite. O grupo de caçadores retorna ao Castelo. Um pagem segura o cavalo de D. Henrique enquanto o informa:

- Meu Senhor: lá dentro à espera de V. Senhoria está D. Egas de Riba Douro. Quer falar com V. Senhoria antes da ceia.

D. Henrique, apreensivo, não responde. Desmonta do cavalo e dirige-se para a entrada da Torre de Menagem enquanto os escudeiros cerram a porta principal do castelo.

Os pagens abrem a porta da Torre e, ao entrar, D. Henrique depara imediatamente com o seu grande Amigo e irmão de Hermígio, Egas Moniz, da mais alta fidalguia de Riba Douro, Tarouca, Lamego e Ucanha.

- Egas, meu Irmão!
- Henrique, irmão meu!

E lançam-se nos braços um do outro, ambos mordendo os lábios para conter as lágrimas.

- Estava em Salzedas (Mosteiro de Tarouca) quando a notícia chegou. Vim imediatamente. Cavalguei toda a noite...

- Não esperava outra coisa de ti, Egas.

E logo num tom mais grave:

- Já soubeste?

- Sim. E exigi ver com os meus olhos. Não leves a mal mas tinha que ver para crer.

- Sim, Claro. A maior ventura seguida da maior desgraça...
- Irmão Henrique: os mistérios de Deus...
- Já sei, já sei. É o que sempre diz teu irmão Hermígio. Está lá fora... vai vê-lo.

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- Não, meu irmão. Hermígio pode esperar. Esta conversa, não. Como sabes, pedi – por via da muita estima que te tenho - aquilo que te pedi. E tu concedeste. Agora venho reclamar o teu penhor.

- Egas, meu irmão. Bem sei o que te prometi. Mas nenhum de nós poderia prever o que a Fortuna nos reservava. A criança nunca vai poder andar. Nunca será Rei nem sequer Conde de Portucale... Agradeço-te do coração mas estás desobrigado do teu pedido.

- Como, Henrique??? Só por cima do meu cadáver! Venho reclamar a tua promessa. Não me importo que Deus assim tenha decidido. Venho reclamar o que combinamos. Mal a criança atinja os dois anos de idade, esteja como estiver, será por mim educada para ser Conde, Rei ou Papa. O Amor que lhe darei é o mesmo quer tenha pernas e braços ou não. É-me igual! Portanto é isto o que te venho aqui dizer: ao perfazer dois anos a criança passará a ser educada por mim tal como acordámos mal se soube que vinha a caminho. E eu não abdico de ser o seu Aio.

- Egas! Aio?? Por Amor do Altíssimo! Como é que a melhor linhagem de Riba Douro pode vir a ser aio de um fedelho? Eu, que sou estrangeiro, é que devia ser aio dos teus filhos. Tu pertences à melhor casta da nobreza de Entre Douro e Minho! E a mais antiga também.

- Chama-lhe o que quiseres, irmão. Mas o teu rebento será por mim educado tal como tínhamos acertado os dois e também com Sua Senhoria D. Teresa Vossa esposa. E disso não abdico.

- Egas (condescendendo): nem eu esperava outra coisa. Rezemos, pois, por um Milagre e que Deus tenha compaixão daquela pobre criatura e se digne fazer um grande Gesto. Pelo menos que ela possa manter-se de pé. No cavalo teremos que a cingir com algum engenho à sela. Tenho Esperança que será possível mantê-lo no dorso de um cavalo sem cair. Havemos de o conseguir!

- Claro, Irmão. Juntos e com a Graça de Deus... Juntos havemos de conseguir. E agora vamos ver o nosso outro Irmão.

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Um forte abraço une uma vez mais D. Henrique e D. Egas Moniz.

E mais uma vez o carácter e a integridade de Egas Moniz levam a melhor sobre o preconceito medieval instituído. Deficiente ou não, o futuro Rex de Portucale havia de ser educado por si.

O destino, mais à frente, iria dar uma volta de 180 graus ao futuro desta criança. Mas, por enquanto, nenhum dos dois o poderia imaginar.

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Capítulo 3 – A partida e a morte do Conde D. Henrique

Exterior do Castelo de Guimarães. Ano de 1112

Raia a Aurora. Os cavaleiros, cerca de 100, aguardam pelo Conde D. Henrique já do lado de fora das muralhas. Nos aposentos de D. Teresa, D. Henrique despede-se da esposa, D. Teresa de Leão, que se encontra de pé à sua frente.

- Senhora minha: está na hora. Esta campanha não demorará mais de um mês. Tenho que defender Vossa Irmã do seu infame segundo marido, Afonso, que cerca Astorga, agora Terra Nossa. Por muito que me custe, sangue é sangue e Terra é Terra. E não darei de barato o que tanto nos custou a conquistar.

- Ide, meu Senhor. Realmente o meu novo cunhado não é de fiar. Mas Deus não permitirá que ele leve a melhor.

Com um beijo na mão de sua esposa e outro na testa da criança que dormia ao colo da aia, D. Henrique retira-se dos aposentos, atravessa o corredor, sai para a praça interior da fortificação, monta o seu nervoso ginete, que o escudeiro muito a custo tentava segurar, e levanta o braço para os serviçais que, amontoados na praça, gritam:

- Viva D. Henrique e seus Bravos Cavaleiros! Boa Ventura!

- Meus fiéis serviçais! Dentro de uma lua, com a Benção de Deus Pai, aqui estarei para vos contar as façanhas desta nova Batalha e da Libertação de nossa Cidade Astorga. Até lá, querendo Deus, Nosso Senhor!

- Viva D. Henrique! Que vá com Deus e Boa Ventura!

D. Henrique abandona a praça com um último aceno e, já fora de portas, exorta os seus cavaleiros:

- Meus Bravos! O nosso Bom Deus e minha cunhada D. Urraca pedem-nos que façamos Justiça à traição de Afonso I, seu infeliz esposo. Vamos dar-lhes batalha forte e, com a Graça de Deus Nosso Pai, venceremos e reporemos a Justiça em Astorga!

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- Por Cristo e D. Henrique! Por Cristo e D. Henrique!

E os cem cavaleiros partem a galope para o cerco de Astorga deixando atrás de si os ecos dos gritos vibrantes e dos cascos dos cavalos envolvidos numa núvem de poeira.

Passam 4 dias na viagem. D. Henrique e os seus cavaleiros chegam a Astorga. É noite cerrada. Milhares de archotes cercam o castelo. Tudo em redor são acampamentos. Ouvem-se os risos das mulheres da vida, os berros dos bêbedos, as gargalhadas dos jovens. De dentro da fortificação, no entanto, nem um som. Nem uma luz.

Astorga está cercada há já um mês completo pelas tropas de Afonso I, o segundo marido de D. Urraca. O casal que se zangava e reconciliava alternadamente. E de cada vez que tal acontecia, um novo cerco, uma nova escaramuça, uma nova batalha.

Madrugada alta, com os sitiantes dormindo e aproveitando um denso nevoeiro, D. Henrique e os seus cem cavaleiros aproximam-se do flanco da fortaleza. Ao sinal combinado, outros cem cavaleiros saem da fortificação pela porta principal erguida depois de untada com azeite e banha para evitar o ruído.

As duas alas de cavalaria precipitam-se em conjunto sobre o acampamento principal onde o rei traidor Afonso I dormia um bem regado sono.

-Alarme! Tocam as trombetas dos vigias! Os sitiantes estremunhados precipitam-se para as armas... mas é tarde demais. Os cavaleiros de D. Henrique e de D. Urraca estão a cair sobre eles sem piedade.

Uma surtida de surpresa a meio da madrugada!... à boa maneira Templária. Ninguém ali o esperaria. A noite era usada tradicionalmente pelos sitiados para fazer saídas curtas para conseguirem algum mantimento ou para enviar mensageiros isolados. Nunca para fazer a guerra.

O Rei ainda consegue escapar, em trajes menores, protegido pelos seus escudeiros. Mas quem fica é dizimado. A cavalaria organizada não dá hipóteses

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à infantaria confusa. As tendas são queimadas, os fugitivos esmagados ou passados à espada.

Quem consegue fugir, salva-se. Quem ficou a dar batalha foi esmagado. Por fim, quarenta a cinquenta peões ajoelham depondo as armas. A batalha terminara em poucos minutos. O Rei escapou. Mas ficou sem metade das tropas.

- Hurra! Hurra! Por D. Henrique! Hurra! Hurra! Por D. Urraca!

Henrique e o Condestável de D. Urraca desmontam e abraçam-se. Os vencedores percorrem o acampamento despojando os soldados caídos dos seus valores. As peças valiosas encontradas dentro da tenda real são trazidas a Henrique e ao Condestável. Este obsequia D. Henrique com esse valioso saque.

- O saque é vosso, por direito e Valor.
D. Henrique agradece. Realmente, a Tradição medieval manda que quem ajuda

a ganhar um Sítio leva a melhor parte do saque.

- Graças, Condestável. Assim o farei por Honra de Deus e de meu filho Afonso cujo nome não desmerece o deste impostor!

E, por entre o júbilo das tropas vencedoras, Henrique e o Condestável de Leão montam e regressam para o castelo.

Por um breve instante olham para trás e confirmam a destruição total dos acampamentos sitiantes, consumidos pelo fogo e pilhados pelas tropas aliadas. Dezenas, ou mesmo centenas, são os corpos jazendo que estão a ser despojadas dos seus pertences pelos escudeiros dos cavaleiros vencedores.

Nessa mesma noite, retemperadas as forças, decorre um banquete com música e dança e muita alegria na sala principal.

Manda a tradição que os vencedores confraternizem durante uma semana em banquetes, danças e folguedos após a vitória numa batalha (ou cerco, neste caso). Mas D. Henrique queria voltar o mais depressa possível para a sua Esposa e filho.

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- Condestável: Esta é a última noite que descansaremos em tua Casa porque amanhã cedo quero voltar para PortuCale.

- Meu Senhor! Tão cedo? Nem 3 noites aqui passastes. Olhai que os Vossos homens estão a adorar a estadia!

E lança o olhar para um grupo de jovens que se divertia com outro grupo de donzelas.

- Bem o sei... mas tenho saudades do meu filho. Quero ver se ele melhorou das pernas.

O Condestável, já um pouco bêbedo, responde:

- Meu Senhor: que Deus te ouça. Não quero tirar-te esperanças mas essa doença não costuma ter cura...

D. Henrique dá um murro na mesa e levanta-se de um salto, como para protestar, mas cambaleia por um segundo e vai cair sobre a mesa quando é agarrado pelo cavaleiro a seu lado

O Condestável, rindo:

- Então, Meu Senhor? O que se passa? O hidromel de Astorga é forte demais para os Portucalenses? Ah! Ah! Ah!?

D. Henrique retorna a si, claramente confuso, sem perceber o que se estava a passar

- Onde estou? O que se passou? O Cavaleiro que o ampara elucida:

- Parece que Monseigneur não aprecia as qualidades do nosso hidromel. Este é a sério. Não é amansado pela brisa marítima! Ah! Ah! Ah!

D. Henrique senta-se de novo, ajudado pelo cavaleiro e diz:

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- Mas eu não estou bem. Bebo desde criança e não seriam 6 copos que me poriam assim. Vejo tudo a rodopiar...

- Monseigneur: pensei que estaríeis a folgar mas agora vejo que estais a arder em febre!

E o Condestável ordena:

- Homens! Levai D. Henrique para dentro. É muita emoção junta. Ele tem que descansar.

De imediato dois escudeiros, um de cada lado, amparam e conduzem D. Henrique aos seus aposentos.

Quatro semanas volvidas, no castelo de Guimarães, Egas Moniz passeia com D. Teresa, com o seu escudeiro e as duas aias.

- Senhora Minha: sabeis novas de V. marido e senhor D. Henrique?

- Ainda não e já estou em cuidados. A última coisa que me disse foi que voltaria num mês e já passaram quase dois...

- Não há de ter acontecido nada de maior senão a esta hora já o saberíamos... Nisto, um vigia grita da amurada:
- Três cavaleiros aproximam-se a Norte!
- Quem são? Consegues distinguir estandartes? Pergunta Egas Moniz.

- Não está levantado ainda.... espere... agora sim... Mas não conheço. É vermelho com um ramo verde ao centro...

- É um ramo de carvalho. Vêm de Astorga! – exclama o Senhor de Riba Douro. - De Astorga? Aflige-se D. Teresa. E o meu Senhor não vem com eles???
- Não vislumbro o Senhor D. Henrique.

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Egas Moniz ordena que se abram os portões. Os 3 cavaleiros entram no castelo e desmontam. O do centro dirige-se a D. Teresa e, com uma vénia, entrega-lhe um colar e 2 braceiras.

D. Teresa (aflita):

- Deus Meu! Henrique! São do meu senhor! Onde está ele??

O cavaleiro de Astorga, com voz grave:

- Senhora Minha, vosso Esposo e Senhor D. Henrique foi chamado por Deus...

D. Teresa, desesperada:

- Não!!! Mataram-no??

- Não, senhora minha. Ninguém o conseguiria. Vosso esposo foi o mais valoroso guerreiro no desmantelamento do cerco... e nem ferido ficou.

- Nem ferido??? Então... então como perdi o meu Senhor?

- Acontece que nem três dias eram passados desde a heróica Vitória e Vosso Senhor foi acometido de forte febre. E a ela não resistiu mais do que uma semana.

D. Teresa (suplicando):

- Meu Deus! Por que me levaste o meu Senhor?

- Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. Os melhores físicos de Astorga estiveram sempre a seu lado. Mandámos vir um a que chamam milagreiro de Carrión. Mas nem esse lhe valeu.

D. Teresa, suplicando:
- Meu Deus! Perdoai a este pobre pecador!

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- Mas fique V. Senhoria ciente que ele não sofreu. Entrou em delírio nos últimos dias e só falava em V. Senhoria e no seu filho. E repetia: “Ele vai ser Rei! Ele vai ser Rei!” Não percebemos bem o que queria dizer com isso...

D. Teresa, recompondo-se:

- Deixai. Eu sei o que ele queria dizer. Mas porquê? Isto só pode ser mais uma provação de Deus Todo Poderoso.

E, resignando-se:
- Teremos que a aceitar. É a sua Vontade...

- V. Senhoria: nós viemos à frente. O corpo de Sua Senhoria chegará provavelmente amanhã por esta hora.

- Sim. Entrai. Ponde-vos à vontade. Aias: preparai um banho quente e comida forte para estes gentis cavaleiros. A malfadada notícia que nos trazem não pode ser confundida com o seu empenho e denodo. Ide!

E as aias entram com os cavaleiros para uma dependência contigua às muralhas. Nisto chega Egas Moniz

- Senhora: estou destroçado.

- Bem o sei, meu Bom Amigo. A Ventura não nos tem sorrido mas temos que nos resignar. É esta a vontade de Deus...

- ... cujos mistérios são insondáveis.

- Que mais nos reservará o Divino?

- Senhora: a partir deste momento, aconteça o que acontecer – e agora por maioria de razão! – eu quero educar o Vosso filho. Será menos uma preocupação para vós; e acreditai que dele cuidarei como se de filho meu se tratasse.

- Eu sei, Bom amigo... eu sei... mas ele nem 2 anos ainda fez...

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- Senhora: Dada esta inesperada fatalidade e uma vez que a criança, por infeliz sina, não mais verá o seu querido Pai, peço autorização para o levar comigo logo após as exéquias de Vosso Esposo.

- Não sei que te responda, bom Amigo. Foi promessa de meu falecido esposo e terá que ser cumprida. E mais agora que - como infelizmente bem o dizes – ele não mais verá o seu Pai...

- Senhora Minha: Tendes, a partir de agora, um Condado inteiro para gerir; terras, montes e vales a perder de vista e populações aos milhares para cuidar. Deixai-me aliviar-vos, ao menos, de uma tarefa que sei ser capaz de levar a bom Porto. E eu me comprometo a trazer-vos o Infante Afonso Henriques anualmente à vossa presença para que nunca se esqueça de sua Querida Mãe. - Está bem, Meu Amigo. Agora deixai-me por momentos. Preciso ficar só.

- Com certeza, Senhora. Deus e a Alma desse grande Homem que foi o vosso Esposo vos acompanhe agora e sempre.

D. Teresa encaminha-se cambaleando para dentro do palácio Ducal.

Egas observa-a meditando nas duras provações a que o Senhor a está a submeter. Primeiro, o filho tolhido. Agora, fica viúva ainda na flor da idade... Que mais desgraças lhe reservará o destino?

Castelo de Guimarães. O funeral de D. Henrique. Todos os residentes do Castelo e ainda o Condestável de Astorga, D. Urraca e a sua comitiva estão presentes. O Arcebispo de Braga, D. Maurício Burdino, que viria a ser o Anti Papa Gregório VIII, preside às exéquias num latim irrepreensível. O corpo viajara muitas milhas para ser enterrado. Mas não na Terra em que nasceu nem naquela que o viu morrer. Henrique, um francês, um viajante pela Hispânia, lutara em muitas frentes. E faria aqui a sua última viagem.

- ... “memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris”... Lembra-te, Homem, que és pó e ao pó hás de voltar.

O corpo desce às catacumbas da Igreja no meio do choro gemido das mulheres e do absoluto silêncio dos homens. A pedra tumular é colocada com um som

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arrepiantemente cavo. Um a um, todos saem da Igreja. Egas Moniz dirige-se a D. Teresa:

- Senhora minha: é hora de partir. Vosso filho está já na liteira. Ide despedir-vos dele e tomai para Vós os próximos dias para descansardes e recuperardes desta tão grande tragédia.

D. Teresa dirige-se à liteira e beija longamente a criança que está preste a partir para Salzedas e para o mosteiro de S. João. São as Terras de Riba Douro, as Terras de Ucanha, actual Tarouca, distrito de Viseu.

A liteira parte com a comitiva de Egas Moniz. D. Teresa fica especada, os braços caídos a ver a liteira afastar-se. Dentro dela vai o futuro Rei de Portugal. Um Rei que nunca poderá erguer-se nas suas próprias pernas.

- Meu Deus (murmura): o que reservarás para o futuro deste meu frágil e infeliz menino? Seja o que for, por favor não o deixeis morrer... mesmo que nunca venha a andar. Mesmo que nunca venha a montar a cavalo... mesmo que nunca venha a ser Rei. Será sempre o meu filho.

Mas nem a mais fértil imaginação se aproximaria do que o futuro reservava ao seu querido filho.

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Capítulo 4 – A Visão de Santa Maria, a Igreja de Rates e o desastre de Chaves

Torre de Ucanha. Tarouca. Meio dia. Passaram-se 6 anos. A criança, o Infante Afonso filho de Henrique tem agora 7 anos. É uma criança extremamente inteligente. Aprende tudo com muita rapidez. É muito desenvolto na oralidade e rápido nas respostas. Já conhece o pequeno Império de Riba Douro. Conhece as aldeias e vilas, os rios, os vales, as plantas e os animais. É um verdadeiro menino-prodígio... mas não anda. Nem sequer consegue manter-se em pé. As suas pernas continuam dobradas e sem músculos. Para se equilibrar sobre um potro, um escudeiro de Egas Moniz arranjou um sistema composto de duas varas verticais fixadas uma de cada lado da sela, às quais o menino se segura com as mãos. Mas apenas consegue segurar-se se o animal se mover devagar. A passo. A trote, ele acaba sempre por cair. E o galope é impensável.

- Não adianta, Pêro. Caio sempre. Não consigo dar uma volta completa à praça de Britiande...

- Não desespereis, Senhoria Menino - responde-lhe o fiel escudeiro Pêro de Ucanha. Com o tempo tudo se há de resolver... tende confiança!

- Confiança? (desanimado). Pêro: cada vez estou pior e menos tempo aguento em cima do potro. Cada vez tenho que fazer mais força e canso-me cada vez mais...

- Eu sei, Meu Senhor Menino mas a Vida é mesmo assim. Temos que lutar com perseverança contra as nossas próprias limitações. Reparai: vós tendes 7 anos e sabeis ler editais e escrever o vosso nome. Eu tenho quase 30, ninguém me ganha a montar e a subir a uma torre... mas não distingo uma letra. Cada um é para o que nasce...

- Pois sim, bom Pêro. Mas de que me serve saber ler e escrever se não consigo andar, correr e nem sequer montar? Passarei o resto da minha vida sentado numa cadeira? De cada vez que quiser levantar-me tereis que me ajudar e transportar para qualquer lado, até para a latrina? Não quero um futuro desses para mim!

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- Meu Amo: a Vida muitas vezes mostra-nos caminhos que não vemos e Venturas que não esperamos. É preciso ter confiança em Deus, Nosso Senhor. Ele lá terá as suas razões e, querendo, nos indicará o melhor desses caminhos. Temos apenas que aguardar esse chamamento com esperança e alegria...

- Pois sim, bom Pêro. Assim farei. Aguardarei que esse caminho se abra à minha frente.

Nisto, ouve-se a voz ao longe:

- Infante Afonso! Afonso Henriques! E Pêro! Vinde aqui!

Afonso e o escudeiro apressam-se. Era o Senhor D. Egas Moniz. Afonso, montado, segura-se com uma mão a uma das varas da sela e com a outra agarra com força a mão de Pêro que corre a seu lado.

- Afonso! Pêro! Preparai-vos. Vamos partir!
- Partir, meu Amo? Para onde, se posso ousar perguntar-vos?

- Pêro! Afonso! Esta noite tive uma epifania. Vi a imagem de Nossa Senhora que me acordava. Dizia:

- D. Egas... D. Egas... dormes?

- E Vós quem sois? - perguntei.

- “Sou a Virgem que mando que vás a Rates e caves nesse lugar e encontrarás uma igreja que em outro tempo foi começada em meu nome e uma imagem minha. Coloca o menino sobre o Altar e vereis que fica sarado. Para o fortaleceres ainda mais leva-o a banhos às termas de Chaves. Quando voltares o menino será forte e são. E o meu Filho quer por ele destruir os inimigos da Fé”.

Portanto vamos rápido chamar seis cavaleiros e aparelhar a liteira e vamos para Rates e a seguir para Chaves. O menino vai ficar curado!!!

- Graças a Deus! Vede, Senhor Menino! O caminho de que vos falava!

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- Deus te oiça, bom Pêro... Deus te oiça...

Os preparativos para a Viagem milagrosa iniciam-se em Britiande. Cavaleiros e escudeiros armam-se, mulheres trazem mantimentos, aparelha-se a liteira a dois cavalos robustos e nessa mesma tarde se inicia a viagem que pode mudar o destino do futuro Rei e de um novo País. Poucas horas após a comitiva de Britiande saía com destino ao Futuro...

Três dias de viagem foram suficientes para que a comitiva chegasse a Rates. Mas aqui surge um novo contratempo: os escudeiros procuram descobrir, perguntando à população local, o lugar onde em tempos terá existido uma ermida, uma igreja, uma capela... mas acontece que já ninguém o sabia dizer.

De facto, o templo original datava do sec. IV, do tempo da romanização, ainda antes da chegada dos povos bárbaros e posteriormente dos muçulmanos. Oito séculos depois nada tinha resistido. Nenhum vestígio era conhecido. E agora?

- Senhor: corremos tudo; batemos a todas as portas, perguntámos a todos os camponeses e mestrais. A Lenda é conhecida mas o local onde em tempos se levantou a Igreja... já não. Sinto muito.

- Não desistiremos, Pêro. Amanhã, querendo Deus, a acharemos. Esta noite ficamos por aqui. Cavaleiros: para a albergaria! Escudeiros: montem acampamento no cimo daquele monte. A noite está calma e bom tempo. Basta uma sentinela. A Deus vos encomendo.

- A Deus encomendamos Vossas Mercês, Cavaleiros! - Responderam os escudeiros.

O resto da noite foi calmo. Mas Egas Moniz estava apreensivo. Não contava com mais este contratempo. Como era possível que ninguém – mesmo ninguém! - conhecesse o local onde há oito séculos se erigira a Igreja em Honra de Nossa Senhora?

Como iria ele descobrir o que há oitocentos anos se perdeu? Estava nestes pensamentos quando o sono o tomou.

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No dia seguinte, mal a manhã clareou, D. Egas e os seus cavaleiros acordam e preparam-se para partir.

- Companheiros: uma coisa é certa. Não vamos voltar para trás nem seguir para Chaves sem termos esta etapa cumprida. Havemos de descobrir a igreja nem que escavemos os cumes de todos os montes!

O Escudeiro Pêro de Ucanha, acabado de chegar, anuncia:

- Meu Senhor: julgo não será necessário tal trabalho. Acho que descobrimos o local!

- Que dizes, Pêro? Tens a certeza?

- Meu Senhor: ontem ordenaste-nos que fizéssemos acampamento naquele monte a Sul. Pois bem: esta manhã, fazendo o reconhecimento do local, encontrei isto sob uma fraga!

E desenrola um pano, mostrando uma imagem de Nossa Senhora esculpida em Pedra.

- Grande Pêro! Tens razão! Só pode ser ali. A Imagem já a temos e a igreja a escavaremos. Vamos, companheiros!

E partem a galope para o acampamento no cimo do monte. À chegada, Egas Moniz exorta os seus Homens:

- Cavaleiros e escudeiros: a Igreja tem que estar por aqui. Nossa Senhora ordenou-me que escavasse até a encontrar. Procurem o ponto mais alto deste monte e começaremos por aí!

E os homens, cada um por seu lado, dirigem-se de imediato ao cabeço mais elevado, que claramente se distinguia do resto da serrania. E ali começaram a cavar. Pouco tempo depois um dos escudeiros dá o sinal:

- Meus Amos e Senhores: descobri algo grande!

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Os restantes escudeiros e cavaleiros precipitam-se para o local e deparam com um grande bloco de mármore não polido, enterrado a cerca de 2 metros de profundidade. Escavam em redor e em breve descobrem o que parece ser uma mesa de mármore branco. Egas Moniz exclama:

- É o Altar! Descobrimos o Altar!

E tal como ordenado pela Virgem, sem mais delongas, sentam o Infante sobre o Altar e, espalhados em redor, os sete cavaleiros e outros tantos escudeiros rezam com fervor pedindo a Deus que lhes conceda a Graça Maior a que poderiam almejar: a primeira parte do processo da Cura do menino.

Depois da fervorosa oração, os Homens aproximam-se da criança, levantam-na do Altar e tentam colocá-la no chão para verificarem se algum progresso tinha sido atingido.. E a verdade é que por Milagre ou por simples sugestão, o Infante Afonso de Henriques consegue equilibrar-se... embora encostado ao Altar. Mas era já um progresso de qualquer forma! Egas Moniz exorta:

- Vede! Ele equilibra-se! Um Bom sinal! É um Sinal Divino! Vamos de imediato para Chaves. As termas trarão a cura definitiva para o nosso Infante!

E o acampamento é levantado, a liteira de novo aparelhada, o menino nela deitado e a comitiva parte para as termas, as Aquae Flaviae do tempo de Trajano. As águas milagrosas que (se acreditava) podiam curar a maioria das maleitas.

A Viagem durou apenas dois dias. E ao anoitecer do segundo, a majestosa e duplamente milenar Ponte Romana já se recortava no horizonte. Egas Moniz dirige-se aos seus homens:

- Meus Senhores: eis-nos chegados à última parte da nossa Missão. Com a Graça de Deus, amanhã por esta hora teremos o Infante completamente são e pronto para assumir as suas responsabilidades na condução dos destinos do Condado mal atinja a maioridade dos 14 anos. Que Deus nos acompanhe até ao Fim desta campanha.

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Cavaleiros e Escudeiros respondem em uníssono:

- Amen!
E a comitiva segue até à entrada da Ponte. Do lado oposto está também a entrar um rebanho numeroso conduzido por um pastor e o seu filho. Egas dá instruções à comitiva:

- É já noite. Não percamos mais tempo. Avancemos. Eles recuam.

Mas acontece que os pastores já não conseguem segurar o rebanho que se precipita para a ponte. A comitiva de Britiandes também. A meio da ponte o rebanho cruza-se com os cavaleiros. Os cães de parte a parte desatam a ladrar e ameaçam envolver-se numa batalha sangrenta. As ovelhas e as cabras berram assustadas, os cães ladram e rosnam de forma ensurdecedora.

Cavaleiros e escudeiros estão treinados para a guerra e não se assustam. Mas os cavalos, sim. Envolvidos por cães em luta e ovelhas em debandada, espetados nas pernas e no ventre pelos cornos do gado desabrido e sem nenhum espaço para fugir, os cavalos empinam-se, relinchando, os olhos raiados de sangue e esbugalhados de pânico provocado por uma situação de grande perigo sem espaço de fuga, que para eles é completamente nova.

Os cães a ladrar, o rebanho em estampida, os cavalos a relinchar e a empinar- se nas patas traseiras. Incluindo os que transportam a liteira...

O caos durou breves minutos. Os escudeiros não tiveram outro remédio senão passar a fio de espada os cães do pastor que, desesperado, lançava as mãos à cabeça.

Sem contendores, os cães da comitiva do Senhor de Riba Douro acabaram por acalmar. E com eles o rebanho e os cavalos. A paz voltou. Egas Moniz ordena:

- Pêro: vai ver do Infante
Pêro de Ucanha dirige-se à liteira, abre-a e sofre o maior choque da sua vida.

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Rapidamente olha em volta, assegurando-se de que mais ninguém está a ver, cerra a cortina novamente e corre a chamar Egas Moniz.

- Meu Amo! Meu Amo! - em voz baixa ao seu ouvido - Vinde aqui. Vinde rápido. - Que se passa?
- Vinde, meu Amo (aflito). Vinde aqui. Vinde ver com os Vossos próprios olhos!

E conduz D. Egas para a liteira. Egas Moniz abre-a e... ela está vazia!

Mas... mas... onde está o...?

O Escudeiro sussurrando angustiado:

- Chiu, Meu Amo. Reparai... está aqui o colar de seu Pai... o menino só pode ter sido atirado ao rio pelo escoicinhar dos cavalos. Perdemos o Infante!

O Tâmega tem um caudal imenso. Seria impossível resgatar fosse o que fosse da corrente. Menos ainda por parte de cavaleiros equipados com armaduras.

Egas Moniz olha em redor. A noite estava bréu. Lua Nova.

Ninguém, no meio daquela confusão imensa de cães a ladrar, ovelhas a balir e cavalos a relinchar, parecia ter notado que o Menino desaparecera. Havia que pensar rapidamente. E agir de forma mais veloz ainda.

Egas Moniz dirige-se ao filho do pastor, levanta-o do chão e transporta-o ao colo tapando-lhe a boca para o impedir de gritar enquanto bradava:

- Calma, meu Infante! Onde vós já íeis! O perigo já passou! Que alegria ver que conseguistes descer da liteira! Estais quase curado da maleita! Que grande milagre se está a preparar! Louvada seja Nossa Senhora que em boa hora me apareceu em sonhos! Mas agora voltemos para dentro que se faz tarde.

- Vamos embora, Homens!

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E metendo-o na liteira, deixa-o à guarda de Pêro de Ucanha com ordens de não o deixar gritar e de ninguém se aproximar.

A seguir dirige-se ao pobre pastor que, ainda atarantado, corria de um lado para o outro tentando recolher o gado, já que tinha perdido os seus cães, e diz-lhe:

- Bom Homem: presta muita atenção ao que te vou dizer. Se queres viver e que o teu filho também viva, toma esta bolsa de moedas de oiro e diz ao povo que o teu filho caiu ao rio. Tu ficarás bem e ele muito melhor. Pode vir a ser Rei. De qualquer modo não tens escolha. Ou aceitas esta oferta neste momento ou morres tu e morre ele em seguida trespassados pelas nossas espadas!

Perante tal falta de alternativa o infeliz pastor não teve outro remédio senão aceitar o saco de moedas, incrédulo mas resignado, e nem tempo teve para chorar a perda do filho que não mais iria ver e do qual nem se quer se despediu.

Nessa noite ninguém mais viu o seu filho exceto D. Egas Moniz e seu fiel escudeiro.

Durante a noite cortaram-lhe o cabelo curto, como usava o infante, deram-lhe banho, vestiram-lhe as suas roupas e colocaram-lhe alguns dos adereços que o infante usava e lhe tinham sido oferecidos por seu pai, D. Henrique, como o colar achado na liteira.

Explicam-lhe, para o acalmar, que iria viver num palácio e que até poderia vir a ser Rei. E que o pai o tinha vendido. A criança chorou toda a noite mas deram- lhe muita comida boa e guloseimas e ele acabou por se acalmar.

No dia seguinte pela madrugada, antes do sol nascer, Egas Moniz e seu fiel escudeiro dirigiram-se às termas a sós e apenas acompanhados do filho do pastor.

Quando os escudeiros se preparavam para os acordar já eles voltavam das Termas. E Egas Moniz diz-lhes:

- Companheiros: olhai o Milagre! – e apontava para o filho do pastor, uma criança perfeitamente saudável que caminhava com desenvoltura.

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- Correi, Infante... e saltai!

E o filho do pastor corria e saltava perante o espanto geral. Os cavaleiros ajoelharam.

- Vede o Grande Milagre de Nossa Senhora! – continuou Egas Moniz. Fizemos tudo o que ela mandou. E ela recompensou-nos com a Cura do infante! Rezemos agora todos, irmãos, agradecendo a Nossa Senhora esta Grande Ventura....

Epílogo

E foi a partir desse dia que Portugal perdeu um infante deficiente e ganhou um enérgico Rei. Um Rei que em breve iria desafiar a sua “própria mãe” na batalha de S. Mamede.

Mas notai que afinal... D. Teresa não era, realmente, sua Mãe. O que explica essa e muitas outras batalhas em que este menino pastor guerreiro participou e venceu. Um pastor que, por um golpe de sorte, iria no futuro criar o seu próprio país. E o seu próprio reino: o Reino de Portugal!

FIM
João Tilly 6/2020

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