2.02.2004

A Cultura em Seia tem o mesmo problema da construção civil: técnicos a menos e trolhas a mais



Reproduzo uma carta do António Tilly ao Carlos Teófilo explicando porque considera ele que a maioria dos agentes do ensino e culturais na região são autênticos "grunhos".
Eu prefiro chamar-lhes TROLHAS e ATROLHADOS. Sem ofensa para estes, é evidente.
O trolha cultural personifica a antítese do ensino artístico.
É aquele que contribui, com palhaçadas avulsas desconexas, ao vivo e nos média, para a distorção da educação artística da população. Sem se dar conta, é evidente, porque um trolha cultural não tem noção absolutamente de coisa nenhuma relativa aos assuntos que se propõe tratar. Decora uns nomes e está a andar. Sensibilidade e conhecimento = zero.
Um atrolhado é aquele que tudo faz para conseguir esse estatuto, mas ainda não chegou lá. É esta última espécie a que sobrevive em Seia.
Caro Dr. Teófilo:

Serve este e-mail para dar seguimento à conversa que tivemos no bar Conta-Gotas. Devido ao carácter lúdico das conversas de café (e de restaurante) e sabendo que se torna impossível, no decorrer dessas conversas, fixar com precisão os sentidos das ideias abordadas, é natural que muitos dos fundamentos dessas mesmas ideias não sejam explicados dando origem aos comuns e usuais mal-entendidos. Devo assim esclarecer, em primeiro lugar, porque me referi ao meu amigo na conversa que tive com o prof. Francisco Mendes e com o Dr. João Alves, conversa a que assistiu um professor, membro do Conselho Directivo da Escola Secundária de Seia, cujo nome não me recordo.

(Tratava-se do presidente do conselho directivo).

Falava-se da impossibilidade em introduzir o ensino artístico (artes visuais, dança, teatro,cinema, etc), em particular o ensino de música, no Ensino Regular básico e secundário.
Eu defendia que este ensino deveria ser inserido nas escolas do ensino regular, partilhando as instalações e integrado no horário lectivo dos alunos que por ele optassem. Referi também a necessidade deste processo para a legitimação do ensino artístico.

O desconhecimento do ensino artístico

Isto porque o ensino artístico é totalmente desconhecido pela comunidade escolar (alunos, professores e encarregados de educação), situação que se verifica por todo o país, mas que é por demais evidente no Concelho de Seia. Afirmei portanto que os próprios orgãos de gestão das escolas, nas pessoas dos membros que as constituem (i.e. os professores com responsabilidades pedagógicas e administrativas) ignoravam por completo toda a legislação emanada do Ministério da Educação sobre o assunto.
Sei-o da relação que mantenho, enquanto director pedagógico, com 7 escolas do 2º e 3º ciclos do ensino básico.
Tentei e consegui, nestas escolas, inverter a situação.
Deste desconhecimento resulta o profundo desprezo que a comunidade escolar do ensino público (i.e. cujo proprietário é o Estado) nutre pelas escolas particulares ou cooperativas (que são vistas como um negócio, ao contrário do previsto no Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo) e, consequentemente, pelas escolas do ensino artístico vocacional de música, estas ainda estigmatizadas pela crença da futilidade da música enquanto actividade produtiva útil à sociedade.
Concluía, por essa razão, que não é possível uma legitimação e valorização do ensino de música porquanto se denota que a própria comunidade escolar do ensino regular está arredada do assunto, ignorando-o e, nalguns casos, combatendo-o.

Os grunhos

Expliquei, na medida do possível, que tal situação se devia, em grande, parte à falta de informação (de conhecimentos, portanto) dos agentes de ensino, i. e. dos próprios professores.
Foi neste sentido que apliquei a designação de "grunho" para caracterizar, no sentido lato, e numa conversa de amigos, a atitude dos ditos agentes.
Quando, posteriormente, disse que nós (os promotores do ensino de música) colocaríamos os instrumentos musicais (os pianos) na escola do ensino regular, foi referido pelo professor da Escola Secundária que "até havia lá quem os tocasse".
Eu perguntei quem eram essas pessoas, adiantando que só conhecia uma pessoa a quem se poderia, com alguma boa vontade, atribuir essa capacidade: o Dr. Carlos Lopes.
O tal sujeito disse que nem estava a pensar no Dr. Carlos Lopes, mas também não adiantou que saberia tocar piano.

Palhaçada vs Ensino sério

Eu apenas respondi que não conhecia ninguém adiantando que o objectivo da colocação dos pianos não era para fazer festas nem espectáculos, apenas para o ensino do instrumento. Afirmei ainda que para se leccionar o instrumento é necessário uma licenciatura numa das universidades ou escolas superiores de música do ensino politécnico, reafirmando o grande desconhecimento que se verifica nas escolas do ensino regular sobre o ensino de música.
Esclareci, portanto, que no que respeita ao ensino artístico e às artes em geral, incluindo as artes visuais, o teatro, e o cinema, pouca gente haveria em Seia que soubesse do assunto.

A CineEco

Dei o exemplo do CineEco e da necessidade da contratação de um técnico para a sua elaboração: o cineasta Lauro António.
Foi aqui que o nome do meu amigo veio à conversa. Referi, obviamente, não desdenhando dos seus conhecimentos cinéfilos, que a sua participação não se enquadrava na categoria de "especialista" mas sim, de uma pessoa de Seia, interessada no cinema e que nesse sentido colabora, sem remuneração e com o melhor das boas-vontades, na organização do evento.

A diferença entre o Técnico e o Trolha

O que está em causa é o assunto por nós já debatido, da diferença entre o especialista, com formação específica e orientada para determinado assunto de que faz a sua profissão, e o interessado, conhecedor, de carácter amador, legitimado por um suposto valor social adquirido e que colabora na realização de eventos.
Pois é esta diferenciação, de carácter técnico, que se torna necessário esclarecer, não só no que respeita à promoção de eventos (aquilo a que na esfera política, incluindo os meios de comunicação social, se denomina de "cultura"), promovendo a recepção, como no que se refere à actividade de ensino das artes, esta dirigida essencialmente à produção artística mas que é fundamental à fruição e à constituição (formação como agora se diz) de públicos.
É exactamente esta diferença que os "promotores analfabetos" (já muito referenciados nas nossas conversas) e os músicos amadores (na sua maioria também desconhecedores) não querem (ou não podem) entender, pois perderiam relevância social no próprio meio que, também desconhecedor, e contra os fundamentos do ensino, os promove.
Daí a minha atribuição de "grunhos" a todos os que, recusando o ensino artístico, promovem diariamente banalidades sem fundamento e sem sentido no campo cultural.
Trata-se, como é evidente, da própria promoção do analfabetismo, ou, por outras palavras, da "cultura do desconhecimento".

Um abraço.
António Tilly

Instituto de Etnomusicologia Universidade Nova de Lisboa
Av. Berna 26C
1069-061 Lisboa
Telf: 217933519 Ext.583

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