11.20.2003

O problema (da falta) do Ensino

Vamos lá a esclarecer este triste e arrastado problema do Ensino em Portugal e sobretudo no Portugal profundo - o Interior Beirão - a minha zona
Clarifiquemos a minha posiçãoo sobre este assunto que, aliás, é pública há mais de 12 anos (sendo que sou professor há cerca de dezasseis). Por todo o lado tenho escrito o que penso e não será uma sociedade de medrosos (podem trocar as consoantes da segunda sílaba, que o resultado é o mesmo) que me fará ser igual a eles. Nunca o fui. Sempre disse o que tenho a dizer, e neste caso fruto de profunda reflexão e prática profissional de mais de década e meia.
É evidente que a culpa de termos a pior escolaridade da Europa - de termos o maior abandono escolar da Europa e de termos os alunos mais incultos da Europa - não é só dos professores.
Mas é, na sua maior parte, deles.

É que se não percebemos isto, temos então que concluir pela alternativa: que temos os alunos mais broncos da Europa porque são os mais atrasados mentais da Europa, já que o que se estuda aqui é praticamente o mesmo que se estuda em todo o lado.

Falemos na Matemática: um "papão" a nível do 12º ano.
A minha escola tem índices de aprovação, há pelo menos 4 anos, da ordem dos 70%.
No secundário, essa média não ultrapassa os 40% e no 12º não chega sequer aos 30%.
E não se tem podido ir muito mais além, na minha escola, porque os mesmos alunos que atingem 70%, 80% e até mais nos testes, simplesmente não entendem o que se pretende num problema vulgar.

Eles lêem, mas não percebem o que se pergunta.
Se lhes explicarmos o que se pretende, IMEDIATAMENTE RESPONDEM ACERTADAMENTE.
Ora, o mesmo (eu sei) se passa às demais disciplinas.
Eu peço aos meus alunos que leiam os enunciados e, em cada turma do 9º ano, não há mais do que 3 ou 4 cuja leitura seja aceitável. E mesmo desses, uma parte (cerca de metade) não percebeu exactamente o que leu.
A forma perfeitamente balbuciante como os alunos que saem com a escolaridade obrigatória lêem um pequeno excerto de um texto, indica, claramente, a falta de hábitos, a falta de treino de leitura.
Há alunos que praticamente só lêem o que o professor lhes manda ler, na aula.
Ora isso é manifestamente insuficiente.
Possuimos, os portugueses, um património de valor inestimável: a nossa Língua, que nada tem a ver, hoje, com a imediatamente associável "lí­ngua de Camões" (trata-se de mais uma triste demagogia) e já pouco, mesmo muito pouco com a de Eça.
Aquele estilo é impensável usar-se, como é impensável dizerem-se aquelas coisas daquela forma, hoje em dia.
Mas o património linguístico que hoje temos é o resultado da evolução natural de Camões e de Eça, como da maioria dos grandes escritores portugueses e até da oralidade do vulgar cidadão da rua (não estou a falar do execrável bués, e do K substituindo o Q, como é evidente. Ainda não cheguei a esse nível.)

A primeira coisa que um estudante de qualquer assunto tem que fazer é TRABALHAR.
Uns precisam de mais; outros, mais dotados, que assimilam as regras e os mecanismos com mais facilidade, de menos trabalho. Mas todos precisam de trabalhar.
Ora isso é coisa que não se faz, no ensino básico.
Os professores demitiram-se da obrigatoriedade do controle do estudo, por parte dos alunos.
Mandam-nos estudar, apenas. Nada mais.
Eles, claro, não pegam num livro. E está tudo bem, porque no final, mesmo quase não sabendo ler, os alunos fazem o 9º ano.
Esse é o primeiro Crime que está a ser perpetrado no Ensino.
Por negligência, é certo, mas igualmente um Crime.

Se o aluno não estuda, não pode saber, não pode dominar os assuntos que estão na agenda - currículum - e portanto se o professor o passa de ano sem ele ter os conhecimentos que lhe permitam alicerçar os seguintes, o professor está a ser cúmplice de um logro.
Um logro para o aluno, que "passa", e por isso se convence que sabe; um logro para a escola, que aprovando o aluno está ciente de que o aluno tinha condições para passar; e, o pior de tudo: um logro ao paí­s que paga o ordenado ao professor, na convicção de que este consegue transmitir os conhecimentos, perí­cias e capacidades requeridas pelo sistema de ensino em vigor, o que é, obviamente, mentira.

É por verificar que o professor médio hoje em dia não se preocupa suficientemente com a evolução dos seus alunos que eu sustento que é sua a maior parte dessa culpa.
Não porque não saiba ensinar, não por não ser competente em identificar as matérias mais importantes em cada ní­vel de ensino. Não é por nada disso.
É apenas porque não acompanha suficientemente o aluno, porque não identifica as dificuldades em cada caso, porque não tenta descobrir a forma de ultrapassar esses obstáculos que já vêm, muitas vezes de trás, preferindo descarregar sistematicamente a velha frase de "este aluno nunca percebeu nada disto, não tem pré-requisitos, nunca se interessou por isto".
Estamos todos fartos de ouvir estas "desculpas" que, pretendendo desculpabilizar o professor, mais o penalizam por revelarem a sua incapacidade em resolver os problemas para os quais foi contratado e que consubstanciam o seu vencimento ao fim do mês.

Vivemos numa pequena cidade do interior, com alunos oriundos da mais funda e insuspeitada ruralidade.
Mas temos uma escola equipada com tudo o que é necessário para ultrapassar essa insuficiência.
E temos 5 anos de contacto com os alunos. Mais do que o tempo que eles passaram nas escolas do 1º ciclo (vulgo Primária).
Temos uma biblioteca recheada com todo o tipo de livros sobre todos os temas que se possam imaginar. Temos vídeos didáticos, jogos interactivos em cd, internet a qualquer momento. Meios bastante diversificados que muito ajudariam, se utilizados, a consolidar aquilo a que vulgarmente se chama de "cultura geral" - expressão ingrata, mas que identifica todo um conjunto de saberes basilares sem os quais é comunmente aceite que não estaremos a formar pessoas, mas simples autómatos.

Não temos desculpa se, no 9º ano, depois de 5 anos, pelo menos, de trabalho com um aluno, ainda temos o desplante de desabafar que "eles já vêm assim da primária".
Haja um pouco mais de vergonha, ou pelo menos de contenção.


Interactividade positiva
Exemplifico aquilo a que eu chamo de interactividade positiva: ao resolver um problema de proporcionalidade inversa (matemática), sobre o tempo de construção das pirâmides do Egipto, pode aproveitar-se para se falar nas próprias pirâmides em vez de elas servirem apenas como mero pretexto para se fazerem umas contas mais ou menos chatas, a seguir. Porque foram construídas, quando o foram e quantos milhares de toneladas de pedra foram necessários para a sua construção. Se os funcionários eram ou não escravos e, se não eram, se de facto eram voluntários, a troco de quê trabalhavam toda a sua vida nessas obras.
De onde veio toda aquela pedra, por que meio de transporte e como foi possível colocá-las em sobreposição dado que, há milhares de anos, não havia gruas.

Posso garantir que este sistema interactivo funciona às mil maravilhas.
Os alunos interessam-se pelo assunto, o que representa 80% do caminho andado.
Depois é só "obrigá-los" a trabalhar, através da descoberta, da pesquisa, para chegarem às conclusões sobre as possíveis respostas às questões formuladas.

Ora isto é exactamente o contrário do que hoje se faz:
Fazem-se-lhes as perguntas do livro e dão-se-lhes praticamente as respostas implicitamente, e por isso eles não têm a curiosidade natural de descobrir.
Desinteressam-se porque não há mistério, não há a emoção na descoberta. Não há, no fundo, nada que os desperte para o trabalho de procurar descobrir, sempre o caminho mais fácil e eficaz para o Saber.
E também para quê, afinal? Se, ainda por cima, sem nenhum trabalho sempre vão passando...

Quando os professores reganharem o gosto por ensinar e começarem a ver os resultados, tenho a certeza absoluta que o ensino melhorará, e deixaremos de ter a vergonha que é verificar que os alunos que nós damos como aptos para a prossecução dos estudos, raramente chegam mais além.

Essa é a principal vergonha para todos nós.
Afinal, nós não somos pagos para distribuir diplomas de escolaridade mínima admissível a quem permanecerá, para sempre, analfabeto funcional.

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