10.09.2017

Pe António Vieira: o defensor dos Direitos Humanos dos Índios do Brasil

Na vida das Nações há altos e baixos. Há tempos luminosos, tempos gloriosos... e há tempos sombrios.

Em Portugal, o séc XVI foi um tempo glorioso.
Mas o sécXVII foi realmente um tempo bastante sombrio.
O primeiro terço é passado sob o domínio Filipino. O segundo terço é preenchido por uma guerra cruel que nos tirou tudo. Um período de miséria. Só no fim é que se acende uma luz: aparece o ouro do Brasil. Mas também foi uma quimera que pouco durou.

No séc XVII não há, em Portugal, grandes escritores, grandes pensadores, grandes pintores, grandes escultores, grandes artistas, grandes políticos.
Na Europa, pelo contrário, é uma pleiade extraordinária de gente a pensar novo.
Podemos dizer que a civilização moderna é pensada no séc XVII.
Mas em Portugal nada. Ou quase nada.
A principal excepção é o Pe. António Vieira.


Ele nasce numa casinha pobre na rua dos Cónegos, perto da Sé de Lisboa em 1608 e morre no Brasil, na Bahia, em 1697. Portanto ele acompanha todo o séc XVII.

Acompanha os inícios difíceis da guerra com a Holanda, depois o domínio Filipino, depois o momento glorioso da Restauração, e acaba por tornar-se o principal conselheiro do Rei Restaurador (D João IV).

É ele quem luta por essa Europa fora para que Portugal possa triunfar.
Mas a sua grande Obra Humana é a vida inteira consagrada à Liberdade dos Índios.
 - "Os Índios são Homens como nós. Os índios têm direito a viver a sua vida em Liberdade!"
É uma batalha enorme e infatigável que o Pe. António Vieira trava durante toda a sua vida para que isso seja reconhecido e para que os Índios no Brasil viessem a ter uma Condição Humana, uma Condição Cívica igual à dos brancos.

Vieira nasce numa casa pobre, a mãe era mulata, de origem africana, o pai trabalhava na Companhia de Jesus, que lhe deu emprego, quando o filho tinha apenas 5 anos, no Brasil, na Bahia.
Por isso ele vai com o seu pai para a Bahia, onde se matricula no Colégio da Companhia, um Colégio daqueles em que as crianças recebiam uma educação primorosa.
O menino revela-se logo um aluno genial. Veja-se este episódio:

Cada colégio enviava para Roma obrigatoriamente o relatório de tudo o que fazia em cada ano. Como era anual o relatório chamava-se Anua e tinha que ser escrito em Latim.
Era preciso que o padre que o escrevesse o fizesse correctamente.
Aos 18 anos apenas, este noviço foi escolhido para escrever o relatório daquele ano.

Logo a seguir é nomeado Professor de Retórica no Colégio de Olinda (cidade Brasileira do Pernambuco) e começa ai a sua extraordinária carreira de orador.
Porque quando aquele rapazinho amulatado começava a falar... era um assombro! As palavras fluíam-lhe da boca e iam directas à consciência e à alma de quem o ouvia.
Era uma sensação absolutamente inexplicável e uma experiência única ouvir o Pe. Vieira!

Essa notável capacidade confere-lhe imenso prestígio. Ele é ordenado sacerdote, recebe grandes missões dentro da Ordem de Jesus, de tal forma que até Fernando Pessoa o denominaria "o Imperador da Língua Portuguesa".

De facto, nunca ninguém manejara tão genialmente a palavra falada como o Pe. Vieira.
Os seus livros, escritos no sec XVII, ainda hoje nos emocionam.
Mas os grandes tempos começam para Vieira depois de 1640.

Chega à Bahia um navio vindo de Lisboa que traz uma notícia extraordinária: tinha havido uma revolução em Lisboa, o Rei era outra vez Português. Era o Duque de Bragança que tinha sido aclamado Rei. O Sr. D. João IV.
E isso emociona toda a colónia.

O Vice-Rei, que era o Marquês de Montalvão, aderiu imediatamente à revolução, como aderiram os governadores dos Açores, da Madeira, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Índia, China.
Todo o complexo das Nações de Língua Portuguesa adere em bloco e o Vice-Rei manda a Lisboa uma delegação de pessoas distintas para transmitirem ao Rei o seu apoio, que pode contar com o Brasil porque o Brasil o reconhece como o legítimo Rei de Portugal.
Nessa delegação inclui-se um sacerdote da Companhia de Jesus: o Pe. António Vieira. Aquele que dava garantias de "falar melhor" ao Rei.

A viagem é tormentosa - todas as viagens que Vieira faz do Brasil para Portugal acabam em desastres! - o navio foi apresado por piratas, saqueado e quase naufragado.
Por fim, por erro, foi parar a Peniche.
Em Peniche, o povo vem a saber que vêm ali uns Senhores do Brasil e com eles o filho do Vice-Rei. Acontece que o vice rei tinha mais 2 filhos que se tinham passado para o lado de Castela, não aderindo à Restauração. Por isso, o povo julgava que este terceiro filho também seria "traidor à Pátria" e estavam ali todos juntos para o atacar e até para o lincharem.
O Pe. Vieira tem essa primeira missão de explicar àquele povo furioso e indignado, que aquele filho do Vice-Rei era um bom português. E que vinha para lutar por Portugal. E assim lhe salvou a vida.

De Peniche, Vieira vem imediatamente para Lisboa - nessa altura era já um sacerdote famoso pela sua oratória - tinha 39 anos e tinha saído de Portugal há 33, portanto a sua formação é inteiramente feita no Brasil.
E é recebido pelo Rei. D. João IV deixa-se fascinar completamente por aquele sacerdote que tem uma linguagem diferente; que empolga, que deslumbra. E passa a confiar inteiramente nele.
Esse homem vem dizer coisas que para todos são evidentes... mas que nunca ninguém tinha dito. Muito menos daquela forma.
E vem dizer que a Portugal não basta a Independência. Era preciso ganhar a guerra.
Porque a Espanha ia declarar-nos uma guerra. Tal como veio a acontecer.
E uma guerra contra a Espanha não seria brincadeira nenhuma. Espanha era uma poderosa potência militar!

Como é que Portugal iria arranjar dinheiro para entrar numa guerra dessas?
Ele, Vieira, expôs a sua solução: 
Dinheiro há muito. Mas está nas mãos dos judeus, dos cristãos-novos que foram expulsos de Portugal e que estão na Holanda, em Inglaterra, na Itália, em França... e lá têm grandes empresas, grandes companhias, grandes fortunas.
Era preciso atrair essa gente toda de novo para Portugal. Para isso seria preciso acabar com essa odiosa distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos porque, afinal, todos acreditavam(?) em Cristo (o que não era bem verdade mas era politicamente correcto).
Era preciso acabar também com a crueldade da Inquisição, que cometia todo o tipo de crueldades, desacreditando Portugal por toda a Europa.
Em suma: era preciso juntar todos os portugueses no grande esforço pela Liberdade e pela Vitoria Nacional.

O Rei ouve atentamente e compreende que tudo isso é evidente. O dinheiro estava todo lá fora, realmente. Era preciso fazer o que Vieira propunha. E o Rei entrega-se de alma e coração àquele missionário.
Durante anos, D. João IV faz apenas aquilo que o Padre lhe aconselha.
Por exemplo: Vieira defende que a guerra só pode ser defensiva. Portugal não pode atacar ninguém. Porque se atacar, perde. Portugal deve apenas defender-se. E, se se defender, tem sempre mais condições de vitória. Foi o que aconteceu. O Rei seguiu-lhe o conselho. E se o não tem seguido, Portugal teria perdido a guerra.

Por outro lado, é fundamental o apoio das Nações estrangeiras. Da Inglaterra, da França, da Itália. E também da Igreja. E aí surge a Grande Ideia de Vieira. Uma ideia que ainda hoje muitos não lhe compreendem a genialidade e a possibilidade efectiva de a pôr em prática.
A ideia do Quinto Império.

A ideia do Quinto Império é a seguinte:
Aprendia-se na Escola que já tinham existido 4 impérios:
1º, o Assírio, 2º, o Persa, 3º, o Grego e 4º, o Romano. O 5º iria ser o Império Português.
A ideia era estabelecer, em primeiro lugar, uma aliança entre a coroa de Portugal e a de Espanha. Espanha tinha um grande império que abrangia grande parte da América. Portugal tinha outro império que abrangia a parte sul da América e também grande parte da Àfrica e da Àsia.
A esta Aliança adeririam depois os Cristãos-Novos de todo o mundo. Com os seus capitais e ideias. E a Igreja daria a sua Bênção a este Império que realmente seria viável e poderia ter-se constituído, transformando Portugal e Espanha num Império Universal.

Simplesmente isto era pensar muito grande, para a época. Foi considerado por todos os que o ouviam como muito atrevimento.
Então vinha um padre do Brasil pregar uma aliança com os Judeus? Os que tinham matado Jesus Cristo? Não podia ser!
Ainda por cima Vieira questionava a Inquisição. Considerava-a uma brutalidade e uma crueldade. Ora... nos meios mais conservadores e no seio da Igreja Inquisitória começa a formar-se uma oposição cada vez mais forte às ideias revolucionárias do Pe. António Vieira. E a ele próprio.

Entretanto, como Vieira desempenha funções diplomáticas, ele vai a Inglaterra, à França, à Holanda, a Itália... e em toda a parte sustenta as suas ideias (nem sempre com êxito, diga-se).
A hostilidade cresce e o resultado é que, depois de alguns anos em Portugal, o orador é forçado a regressar ao Brasil ao seu trabalho de missionário.

Acontece que, no Brasil, os colonos usam de grande crueldade para com os nativos, os índios. Tratam-nos selvaticamente. Castigam-nos de forma bárbara. Reduzem-nos à escravatura e até chegam a matar aqueles que não querem obedecer aos seus caprichos.

Vieira esforça-se por acabar com essa situação. "Os Índios são tão filhos de Deus como nós".
Mas os colonos não concordam. Dizem que os Índios não são Homens, são objectos, são bestas, são pedras, são rudes animais.

E Vieira responde-lhes: - Rudes animais ? Pedras? Pois levai um estatuário por essas montanhas. Pegai numa pedra tosca, bruta, rude, informe. Depois ele que desbaste o mais grosso, alise-lhe a testa. Ondeie-lhe os cabelos, rasgue-lhe os olhos, assinale-lhe o nariz, acabe por transformá-la numa figura Humana que se pode pôr até num Altar a quem os Cristãos rezam!
Se de uma pedra se pode fazer um Santo o que não se fará com um índio rude do Brasil?

E ele leva-os para os Colégios, ensina-lhes o português, ensina-lhes maneiras de vestir, ensina-lhes práticas civilizadas, europeias, acaba por fazer de milhares de índios "criaturas como nós".

Mas é claro que esses índios vão deixar de trabalhar como escravos.
Quem é que vai agora trabalhar nos engenhos do açúcar? Nas minas? Nas roças, nos cafézais, nas florestas a cortar o pau do Brasil?
Quem vai carregar a lenha e as alfaiais?
Claro que os colonos não concordaram com esta perda de mão de obra.
E expulsam o Pe. Vieira do Brasil. No processo, Vieira chega a correr riscos de vida.

Vieira compreende que não pode vencer esta guerra sem a ajuda do Rei e volta a embarcar para Lisboa para pedir ao Rei uma Lei que reforce a sua posição.
Mais outra viagem tormentosa, outro naufrágio, outra vez à beira da morte, outro ataque de piratas... parece que todas as viagens de Vieira têm esse fim. O que mostra até que ponto já no séc XVII era perigoso viajar para o Brasil.
Os mares estavam cheios de piratas holandeses, inimigos de Portugal que saqueavam os nossos navios. E ele, mais uma vez, passa por essa tragédia.

Mas lá chega a Lisboa e é recebido pelo Rei. D. João IV, que é um velho amigo, e manda fazer a Lei que proíbe a escravatura dos Índios do Brasil - que eram caçados na floresta como se fossem animais! - e entrega a direcção da política indígena do Brasil à Companhia de Jesus.
Era tudo o que Vieira pretendia.

Mas com isso não cessou a oposição dos colonos europeus.
Que precisavam, como já vimos, do trabalho escravo dos índios.
A pergunta sacramental é sempre a mesma: Se não forem os índios quem é que há-de trabalhar?
Os colonos acabam por expulsar os jesuítas do Maranhão e do Pará. São expulsos, embarcados à força e enviados para Portugal.

Vieira chega a Lisboa e é bem recebido pelo Rei. Consegue, uma vez mais, convencê-lo da Justiça da sua política de Humanidade profunda que consiste em transformar aqueles rudes "animais" em criaturas Cristãs e encarrega Vieira de novas missões diplomáticas em Itália.

É aqui que Vieira aprende a falar o Italiano - que o fará deslumbrar nas Igrejas de Itália como tinha feito em Portugal - é aqui que ele vem a conhecer a rainha Cristina da Suécia.
Uma Rainha que tinha abdicado do trono e que tinha decidido ir viver para Itália, para um faustoso palácio onde recebia as figuras mais importantes da Europa, como o Descartes.
Vieira é incluído nesse grupo de Intelectuais. E, claro, deslumbra ao pregar em italiano.
A rainha, deslumbrada, quer fazer dele pregador do seu palácio. Ele não aceita.
Quer fazer dele seu confessor privado. Ele não aceita.
A tudo responde que há UM SÓ Senhor a quem serve. Depois de Deus, é ao Rei de Portugal.

Vieira volta a Portugal, mas a oposição às suas ideias tornou-se entretanto tão grande que agora é a própria Companhia de Jesus quem o persegue. Por ter sido expulsa do Brasil graças às suas ideias.
A Inquisição levanta-lhe também um processo baseado nas críticas públicas que Vieira lhe fazia.
E expulsa-o para o Porto. Do Porto mandam-no para Coimbra.
Aqui, populares chegaram a fazer uma fogueira, queimando um espantalho de palha com a sua cara em frente à Universidade.
Parecia o fim de Vieira que consegue escapar apenas porque tinha conseguido obter em Itália, quando lá morou, um "Breve" Pontifício, um documento que era um autêntico salvo conduto para Vieira, na medida em que que proibia qualquer Entidade religiosa de ter autoridade ou disciplina sobre Vieira, excepto o Papa. Só o Papa podia decidir sobre aquele homem. Foi o que lhe salvou a vida.

Regressa ao Brasil, ao seu trabalho de missionário, mas está já velho, sem forças, cansado e alquebrado.
No entanto, ainda continua a ditar os textos dos seus sermões para esses 16 volumes que ainda hoje emocionam quem os lê.
São textos que se lêem rapidamente. textos corajosos, atrevidos, em que ele chega a desafiar Deus:
"- Levantai-vos! Por que dormis, Senhor? Por que não vindes ajudar este povo que sempre vos tem sido tão fiel? Levantai-vos! Não nos abandoneis! Então que justiça é essa de ajudar os nossos inimigos que foram sempre inimigos da Fé e de abandonar os Portugueses que sempre foram tão fiéis?"

Quando morre é já admirado por toda a agente. Foi uma Obra de missionário, de diplomata, de politico, de escritor. Mas sobretudo foi uma Obra de Herói dos Direitos Humanos.

Num período em que esta expressão - Direitos Humanos - ainda não aparecera na linguagem política, o Pe. António Vieira consagrou a sua vida inteira à defesa dos Direitos Humanos dos Índios do Brasil.

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